Retrospectiva CH: 2020, o ano em que a natureza nos deu um ultimato
E que nós, seres humanos, também demos um ultimato a ela
A crise ambiental global é um caso de saúde pública. Por ano, e levando em conta apenas a poluição do ar, cerca de 7 milhões de habitantes deste planeta chamado Terra são mortos, segundo relatório da ONU de 2019. A cada uma hora, aproximadamente 800 pessoas morrem de câncer ou de doenças respiratórias e cardíacas “causadas diretamente pela inalação de ar poluído, muitas vezes depois de anos de sofrimento”, conforme relata David Boyd, relator da ONU sobre direitos humanos e o meio ambiente. No Brasil, anualmente, mais de mil pessoas vão a óbito vítimas da poluição atmosférica.
Outras doenças são consequências de outros tipos de poluição, como a da água, do solo, dos alimentos que ingerimos… E tudo, direta ou indiretamente, contribui de alguma forma para a poluição atmosférica e o aquecimento global. Nos últimos anos, a perda de oxigênio dos oceanos quadriplicou e o aumento da temperatura terrestre só faz com que o gás diminua ainda mais, gerando zonas mortas. Em países pobres, 80% das mortes têm relação com a poluição da água, responsável por 70% da constituição da nossa Mãe-Terra, que vai de mal a pior.
2020, o ano em que as queimadas bateram recordes no Brasil
Já no começo do ano, tivemos provas incontestáveis de que o governo Bolsonaro não trata questões ambientais como prioridade – provas essas que surgiram desde sua posse na presidência, em 2019. Em abril, no início da pandemia de coronavírus no país, Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, sugeriu durante uma reunião oficial que a COVID-19 fosse usada como “cortina de fumaça” para “deixar a boiada passar”, se referindo a políticas antiambientais que gostaria de aprovar e poderiam ser barradas de alguma forma se antes passassem pelo Congresso ou então ganhassem destaque nas mídias, que estavam focadas, com razão, na cobertura da pandemia.
Mais posteriormente, em agosto, quando a situação de isolamento social começou a ser flexibilizada e as queimadas na Amazônia e no Pantanal começaram a ganhar mais destaque na Imprensa, Salles deu uma nova declaração polêmica e disse que muito sensacionalismo ambiental estava sendo gerado em torno da pauta. Em 2020, os incêndios na Amazônia bateram recordes, assim como o desmatamento, que fechou como sendo o maior em 12 anos. A curva não para de crescer. A situação no Pantanal não é diferente: ele nunca queimou tanto e foi tão destruído como no fatídico 2020.
Novas polêmicas continuaram a ser protagonizadas pelo ministro, com Salles agora comprando uma briga com Leonardo DiCaprio, ator vencedor de Oscar e importante ativista ambiental, culpando-o pelo fogo na floresta tropical e insinuando que ele deveria botar dinheiro na jogada e não apenas fazer barulho online. Em agosto de 2019, DiCaprio doou mais de R$ 20 milhões para o Fundo Floresta Amazônica. Em setembro de 2020, praticamente um ano depois, Ricardo Salles alegou falta de verba para “salvar a Amazônia”, mas foi descoberto que apenas 0,4% dela havia sido utilizada.
Ainda no âmbito das queimadas no Brasil, tanto Ricardo Salles quanto Jair Bolsonaro insinuaram neste ano que elas eram naturais ou então causadas por caboclos, indígenas e ONGs. O ministro do Meio Ambiente também disse, em entrevista ao Programa Pânico, da Jovem Pan, em outubro, que o problema [das queimadas] não é a fiscalização, sendo o principal fator uma mudança de clima (veja bem, “mudança de clima” e não “mudanças climáticas”).
No Brasil, o “X” da questão sempre foi a terra
Salles não errou quando disse que a fiscalização com relação às queimadas na Amazônia não é o principal problema, mas também não acertou. É sabido que 80% do desmatamento hoje é causado pelo agronegócio, em especial, pela pecuária, mas engana-se quem pensa que ela é uma vilã isolada.
Na Amazônia, a questão principal é e sempre foi a terra. Como foi relatado por João Moreira Salles na edição da revista Piauí de dezembro, o roubo de terra na floresta é frequente e mal fiscalizado. No máximo, o infrator recebe uma multa e fica com o pedaço de chão do qual se apropriou, onde salpica uns bois e umas vaquinhas para dizer que está ocupado, que é propriedade privada. E por mais que a titulação leve anos para sair, ela acaba acontecendo, e legal e ilegal acabam se confundindo no meio do caminho. “Na Amazônia, crime é investimento”, pontua a escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho em seu livro Vai, Brasil.
Na Amazônia, ainda de acordo com reportagem da Piauí, mais de 100 mil crimes ambientais são cometidos anualmente, envolvendo desmatamento, tráfico ilegal de animais, biopirataria e extração ilegal de madeira. A solução mais efetiva e barata seria rastrear o boi, pois muitas cabeças de gado podem sinalizar ocupações ilegais de terra. Essa é uma medida já vigente em países como Uruguai, Austrália, Canadá e Japão, “mas, no Brasil, o setor pecuário é contra e não existe vontade política”, afirmou Daniel Azeredo, procurador do Ministério Público Federal, para a matéria de Moreira Salles.
Diante de tal cenário, é relevante ressaltar que, em setembro deste ano, o governo Bolsonaro aprovou uma lei a favor da especulação imobiliária em áreas preservadas, durante a 135ª reunião do Conama. Também em setembro, o desmatamento ilegal em área “protegida” da Amazônia registrou novo recorde, tendo crescido 40% com relação ao mesmo período do último ano. A boiada seguiu passando.
Gaia não é prioridade da maioria
Na mitologia grega, a Mãe-Terra é conhecida como Gaia. A deusa da natureza é primordial para a vida e de imensa potencialidade geradora, sendo impossível existir e sobreviver sem ela. Por mais que o ano de 2020 tenha sido bastante drástico envolvendo a pauta ambiental, e que as perspectivas futuras não sejam nada otimistas, as pessoas seguem se importando pouco ou não se importando nada com o tema.
Neste ano, o Instituto Ipsos realizou uma pesquisa em 16 países, inclusive no Brasil, para entender o comportamento da população com relação às questões envolvendo Gaia. Divulgado no Dia Mundial do Meio Ambiente, 5 de junho, foi descoberto que 85% dos brasileiros acham que problemas como degradação ambiental, poluição, desmatamento e mudanças climáticas representam uma série ameaça à vida humana e devem ser tratados como prioridade no mundo pós-pandemia. Desse número, contudo, 41% confessa não tratar como prioridade a natureza e sua preservação e proteção no próprio dia a dia. Por que isso acontece?
Uma série de fatores contribui para que questões envolvendo o meio ambiente não sejam tratadas com a tamanha relevância que deveriam. Muita gente acaba confundindo pautas ambientais com partidarismo, ignorando que a natureza não toma partido. Governos que paralisam as agendas ambientais e não incentivam políticas verdes também contribuem para que a população se convença de que “a coisa não está tão ruim assim”. Afinal, se estivesse, aqueles no poder falariam… Ou será que, novamente, uma cortina de fumaça entraria em ação?
Há também aquela ideia de que recursos renováveis nunca acabam, o que não é verdade. A cada ano que passa, o ser humano esgota mais cedo o limite do uso sustentável de recursos naturais disponíveis no planeta. Se esse déficit de recursos naturais chega cada vez mais cedo, não é preciso ser um grande matemático para prever que, uma hora, a oferta será menor que a demanda.
Outras duas coisas pesam bastante. Uma, que pega mais os mais jovens, é a sensação de que as coisas vão acontecer muito lá na frente. Ou seja, vão demorar ainda. As agendas ambientais geralmente têm prazos longos, pois eles levam tempo para serem alcançados com as mudanças adotadas. Na contramão, os mais velhos podem acabar se importando menos com o futuro, de forma mesquinha, pois não mais estarão aqui.
Pode parecer que pior do que está, não fica, mas é uma ilusão. Já hoje temos praias e rios impróprios para banho, então não é difícil imaginar um cenário em que não mais poderemos nos refrescar no mar quando formos à praia, e as mudanças climáticas estiverem ainda mais intensas, pois as águas serão sinônimo de morte e não mais de vida.