Relacionamento abusivo: por que não é tão simples assim sair dele?
"Continuou vivendo uma relação abusiva porque quis. Era só ter saído dela": entenda por que, na prática, as coisas não são tão descomplicadas
Na teoria, as coisas muitas vezes parecem ser mais simples do que são na prática, especialmente quando tratamos de assuntos do coração, como relacionamentos. É por isso que, olhando de fora, parece evidente que a solução parar sair de uma relação abusiva seja terminar o compromisso. Entretanto, além de existirem relacionamentos abusivos de todos os tipos, e não apenas entre casais, colocar um ponto final na ligação está longe de ser assim tão simples. Na maioria das vezes, porque pode ser extremamente difícil identificar o que é abuso.
As mulheres são as principais vítimas de relacionamentos abusivos, de acordo com a ONU. Toda relação tóxica começa da mesma maneira: pautada em cima do controle, que é uma forma de violência que pode começar de modo muito sutil, disfarçada de ciúme protetivo, por exemplo. A justificativa mais usada? Que aquele controle é em nome do amor, conforme aponta Cristina Maria Cortezzi, mestre em Psicologia Clínica pela PUC, analista didata e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Daí entra em cena a carência. A pessoa se engana e não percebe que controlar crenças, roupas, amizades, comportamentos e compromissos seja uma forma de violar o espaço do outro. A vítima acredita que o parceiro faz isso porque a ama demais, e peca por desejar cuidar e proteger. “Só que esse controle vai aumentando gradativamente e a mulher, por sua vez, começa a se acostumar com ele, como se fosse banalizando esse abuso, esse sufocamento. Então, a tolerância vai aumentando”, explica a psicanalista, que ressalta que existe uma enorme diferença entre ceder e complacer: “É quando você vai ficando elástica e se afastando do seu eu, por algum medo, inclusive o de perder, e vai se submetendo cada vez mais às situações impostas”.
O jogo psicológico vai ficando tão intenso que, em determinado momento, a vítima começa a se culpar pelo que está sentindo e vivendo. Isso porque as falas do abusador dão a entender que ela está sendo mal-agradecida, que nunca ninguém a amará como ele a ama, que ele só está “louco” porque ela o deixa assim. “A própria vítima começa a pedir desculpas. Ela vai adoecendo, tanto física quanto psiquicamente, enlouquecendo e enfraquecendo nas suas razões. Só que ainda assim não percebe que tem algo de tóxico na relação. Ela se sente incapaz”, explica a Dra. Cristina.
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Na psicanálise, existe uma coisa chamada Desautorização do Processo Perceptivo. É como se com um olho você enxergasse a situação tóxica, mas com o outro tentasse justificá-la, dizendo que, no fundo, a pessoa é boa e te ama. A racionalização [tentar explicar porque a pessoa é assim] e a negação [não enxergar, porque a decepção vai ser tão grande que é melhor nem ver] são mecanismos de defesa do cérebro; e é aí que procurar ajuda profissional se torna imprescindível nesse processo de entender que está vivendo uma relação abusiva, e precisa e pode se desvencilhar dela. “Essa oscilação de enxergar só com um olho não leva a uma resultante de abrir os dois olhos. Porque, ao abrir, você vai precisar lidar com consequências desagradáveis, que a mulher pensa que não vai dar conta. Porém, se você não vai em direção à verdade, você adoece. Quando a pessoa se fortalece com o trabalho analítico, ela vai em direção a sua saúde mental e começa a sair de situações que são insalubres. É preciso buscar ajuda, porque, caso contrário, a tendência é a repetição“, alerta a psicanalista.
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Respondendo a pergunta do título da matéria, não é tão simples sair de um relacionamento abusivo porque (1) as formas de abuso psicológico podem ser muito sutis; (2) a pessoa tende a ir se acostumando com as violências cotidianas, mesmo elas se tornando maiores e mais frequentes; (3) a vítima começa a se sentir culpada pela situação; (4) muitas vezes, ela tenta justificar os atos do parceiro até como autopreservação; (5) buscar a verdade é por si só um processo difícil e doloroso; (6) ela, durante o processo, pode acabar sendo desacreditada em diversos momentos e por várias pessoas; (7) a ameaça econômica é real e gera muito medo na vítima; e (8) o nosso próprio cérebro utiliza alguns mecanismos de defesa que podem nos fazer mascarar a verdade e dar aquela sensação de incapacidade.
Dentre as principais e mais comuns formas de violência cotidiana, a Dra. Cristina Maria Cortezzi destaca:
- controle disfarçado de preocupação;
- humilhação;
- bullying;
- desqualificação, tanto com relação à pessoa quanto com relação àqueles que ela ama;
- elevação do tom de voz;
- falas no modo imperativo, sempre exercendo comando;
- cobranças;
- ameaça econômica, como se a mulher não fosse conseguir sobreviver sem o dinheiro do homem;
- atitudes que diminuem a parceira e a fazem questionar sua capacidade.
É preciso parar de culpabilizar e desacreditar a vítima, para que assim ela se sinta encorajada, em um mundo já tão machista e perigoso para as mulheres, a buscar ajuda, denunciar (Disque 180) e reencontrar sua verdade.