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Marília Mendonça: a fixação pelo corpo da mulher e a magreza como troféu

A patroa não ia querer tantas narrativas focadas em aparência física, machismo e preconceitos racial e de idade com relação a ela e sua família

Por Isabella Otto Atualizado em 30 out 2024, 17h00 - Publicado em 9 nov 2021, 12h03

“Ela fez tanto pra chegar nesse shape lindo, né? Ela emagreceu, criando um caminho pra ela, que fazia sentido, com esse vozeirão. E, de repente, ironia do destino, morreria dali a quatro, cinco dias”, disse Ana Maria Braga ao comentar a morte de Marília Mendonça no programa Mais Você, da TV Globo. No Domingão, Luciano Huck relembrou o último momento em que esteve com a cantora e também fez questão de falar sobre a aparência física de Marília [e de Maiara e Maraísa, que estavam com ela na ocasião]: “Faz três semanas que eu estava com as três no palco. Três semanas. Na verdade vieram só metade das três no palco, porque estavam magrinhas“.

+: Cantora Marília Mendonça morre aos 26 anos em acidente aéreo

O jornalista Gustavo Alonso, da Folha de São Paulo, publicou um memorial que foi amplamente criticado na internet. “Nunca foi excelente cantora. Seu visual também não era dos mais atraentes para o mercado(…) Era gordinha e brigava com a balança. Mais recentemente, durante a quarentena, vinha fazendo um regime radical que tinha surpreendido a muitos. Ela se tornava também bela para o mercado“, escreveu. Logo na sequência, o colunista disse que “definitivamente, não foi isso que o Brasil viu nela”, de repente tentando mostrar que a artista era muito mais que um corpo – mas sem sucesso. Se o título da coluna é “Rainha da Sofrência não conheceu o fracasso”, Gustavo definitivamente soube o que foi fracassar com um texto – a não ser que ele considere os muitos cliques recebidos na força do ódio como sinal de vitória.

Foto em preto e branco da cantora Marília Mendonça. Ela usa um vestido preto e segura uma tiara na cabeça. Na frente dela, um tweet da artista falando que seu sucesso não tinha a ver com sua aparência
Instagram/Twitter/Reprodução

O emagrecimento de Marília Mendonça chamou a atenção de todos. Tanto que a própria cantora fez questão de criar um destaque no Instagram para os curiosos de plantão, contando o que estava fazendo para perder peso e que o regime era por questões de saúde. Ela mesma brincava com o assunto. Seu último vídeo publicado foi uma zoeira, dizendo que ela iria fazer shows em Minas Gerais, terra do pão de queijo e do feijão tropeiro, mas que continuaria na saladinha e na maçã. Ela falar sobre o assunto é uma coisa, outra completamente diferente é uma mulher ser tratada como uma vitrine, em que conquistas e conteúdos são apagados pela aparência.

Em junho deste ano, cinco meses antes de vir a óbito no trágico acidente de avião, Marília postou no Twitter falando que tinha decidido emagrecer agora porque não se permitia fazer isso antes de mostrar seu trabalho para o Brasil e provar que seu triunfo não era pautado na imagem. “A Marília Mendonça chegou lá sem se render às vozes que diziam ser impossível… Com aquelas roupas, com aqueles sapatos, com aquele peso. O que eu vivo hoje é uma escolha exclusivamente minha, de mais ninguém, e o que construí não é baseado nisso”, garantiu.

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É claro que a morte precoce e inesperada da goiana não foi resumida apenas nessa questão. Ela foi homenageada pela carreira, pelas composições, pela autenticidade, pela luta pelas mulheres, pela força, pela alegria, pela humildade, por ser profissional, filha, mãe e mulher. Mas a constante necessidade de algumas pessoas comentarem o fato de Marília estar de dieta e ter passado por uma enorme transformação visual mostra o quão problemática é a nossa sociedade para as mulheres, que não têm descanso nem depois que morrem. A imagem muitas vezes se sobressai ao legado e à personalidade, e tantas vezes por insistência e culpa desse sistema que coloca a beleza acima de tudo, que contribui com a indústria das cirurgias plásticas e frustra milhares de mulheres todos os dias. Porque o padrão é inalcançável, e quer estejamos dentro dele ou não, nossos corpos são sempre julgados. Se a gente vai contra, é criticada. Se a gente se submete, é criticada. Só que ao mesmo tempo, num lance meio doentio, é elogiada. Parece não haver paz ou saída.

Além da gordofobia escancarada pela cobertura do falecimento da artista, tivemos outras duas questões gritantes: o racismo estrutural e o ageísmo. Isso porque o marido de Ruth Moreira, mãe de Marília, o jogador de futebol Devyd Fabricio, um homem negro, alto, forte e mais novo que a esposa, foi tratado pela imprensa no geral como sendo “o segurança da senhora”. “Para o imaginário social, o único lugar possível de um homem negro numa situação dessas (perto do caixão e dos familiares de uma das maiores artistas do Brasil) é de um prestador de serviço. A conclusão que tiram é: ele só pode está trabalhando. E se for alto e forte só pode ser segurança”, disse Jonathan Raymundo, professor de História e pesquisador das relações raciais, para a jornalista Cleo Guimarães, da Veja, que classificou o episódio como “o espantoso racismo à brasileira”.

 

Outra questão que mostra como o mundo é sempre mais cruel com as mulheres é que Ruth tem 53 anos e é casada com um homem de 29. É curioso como uma mulher que namora alguém mais jovem que ela sempre choca mais que um cara que namora alguém mais novo, porque a gente meio que normalizou essa situação, sabe? Dizem que o homem envelhece como vinho, mas a mulher não pode aparecer com uma ruguinha na testa e alguns fios brancos na cabeça que já é rechaçada. O galã da novela da Globo já tem 60 anos, mas curiosamente seu par romântico nunca cresce e é sempre uma mulher muito mais jovem que ele. Não é um mundo só esquisito. É um mundo cão! E a gente está dando passos cada vez mais largos rumo à mudança e ao fim desse patriarcalismo todo, que vem de séculos, mas, quando nos deparamos com julgamentos sociais do tipo, ainda mais num momento tão delicado para famílias, amigos, fãs e um país inteiro, percebemos que o caminho é mais longo do que pode parecer. Só que um dia os machistas superam… Nem que na marra.

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Obrigada, Marília. De Cristianópolis para a eternidade.

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