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Ainda hoje o linchamento contra negros não é crime federal nos EUA

Projeto de lei que criminaliza linchamentos contra negros está há dois anos parado no Senado. No Brasil, pretos seguem sendo principais vítimas de violência

Por Isabella Otto 13 Maio 2021, 13h31

A segregação racial nos Estados Unidos começou antes de 1870, mas foi neste ano, durante o governo de Ulysses S. Grant, e um pouco depois da criação da Ku Klux Klan, que leis foram criadas para que os negros pudessem ser legalmente tratados como escória social. Entre 1882 e 1968, estima-se que ocorreram no país, principalmente na parte Sul, onde a segregação racial era mais pulsante, 4.743 linchamentos, sendo 3.446 contra negros e o restante contra brancos que tentavam ajudar negros. Os dados são da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (em inglês, NAACP). 99% dos autores que cometerem esses linchamentos ficaram impunes. Muitos deles, anos mais tarde, foram condecorados, como foi o caso do oficial de governo Harry J. Anslinger, que usava sua posição no Departamento Federal de Investigações sobre Narcóticos para perseguir pessoas negras. Ele foi celebrado durante o governo de Kennedy e morreu tranquilamente no auge de seus 83 anos.

Montagem com as fotos de Billie Holiday e a partitura da música Strange Fruit
Barbara Marcantonio/CAPRICHO

O policial Anslinger foi um dos que liderou a operação contra a cantora de jazz Billie Holiday, que começou nos anos 40. A norte-americana tinha mesmo o vício em heroína, mas a perseguição era mais por causa da música Stranger Fruit, cantada por ela pela primeira vez em 1944, que falava sobre um “fruto estranho” que crescia nas árvores do Sul. Os frutos eram os negros, que normalmente tinha os corpos pendurados em árvores após serem linchados. Billie foi proibida de cantar a música de protesto, tendo desafiado o governo em algumas situações. Os policiais que estavam no pé dela então faziam de tudo para incriminá-la na lei anti-narcóticos, já que, apesar das políticas segregacionistas, prender uma mulher por causa de uma canção fugia das possibilidades. Nesse meio tempo, Holiday foi presa três vezes e no seu leito de morte, no quarto do NYC Health + Hospitals/Metropolitan, em 1959, ela foi algemada pela última (e bastante simbólica) vez.

Neste ano, o filme Estados Unidos Vs Billie Holiday (disponível na Amazon Prime Video) foi lançado. A atriz que dá vida à cantora de jazz, Andra Day, chegou a ser indicada ao Oscar por sua interpretação. Quem levou foi Frances McDormand, por Nomadland, uma excelente atriz, mas que, cá entre nós, nesta disputa contra Andra Day e Viola Davis, por A Voz Suprema do Blues, não merecia a estatueta. Em 92 anos de premiação, apenas uma mulher negra venceu na categoria Melhor Atriz: Halle Berry, em 2002, pelo drama Monster’s Ball. Em 1940, Hattie McDaniel foi a 1ª mulher negra a ganhar um Oscar, de Melhor Atriz Coadjuvante, e precisou de autorização para poder buscar sua estatueta. Até hoje, somente 14 mulheres negras receberam indicações.

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Emmett Till Antilynching Act

No final do filme Estados Unidos Vs Billie Holiday, é informado que os linchamentos nos EUA podem finalmente virar crime federal, com a criação do projeto de lei Emmett Till Antilynching Act, do democrata Bobby L. Rush, de 2019. Até hoje ele segue aguardando aprovação no Senado.

O presidente Biden foi criticado por alguns cidadãos norte-americanos pois, em seu primeiro dia no poder, assinou uma lei em prol dos transexuais. A atitude foi comemorada, e com razão, mas outros projetos, como a enfim criminalização dos linchamentos contra negros, que continuam ocorrendo no país até hoje, seguem engavetados.

 

O nome do projeto de lei lembra a história de Emmett Till, um adolescente de 14 anos que foi linchado até a morte no Mississippi, em 1955. Ele estava visitando sua família, que morava na zona rural do estado, quando a mulher do dono de uma mercearia local, chamada Carolyn Donham, disse que o garoto havia assediado ela com assobios e palavras ofensivas. Quatro dias após a acusação, o marido da mulher, Roy Bryant, e seu meio-irmão, J.W. Milam, sequestraram Emmett, o lincharam até quase a morte e terminaram o serviço com um tiro na cabeça. O corpo do menino foi encontrado próximo a um rio da região.

Mamie Till Mobley, mãe do adolescente, exigiu que o filho fosse velado em caixão aberto para que todos pudessem ver o que estavam fazendo com os negros nos EUA. Dias depois, os assassinos Bryant e Miliam confessaram o crime e mesmo assim foram absolvidos pela Justiça. Anos mais tarde, Carolyn disse em uma entrevista que, na verdade, Emmett Till nunca havia cometido nenhum dos assédios por ela acusados.

As fotos do corpo do garoto no caixão foram publicada pela revista Jet Magazine, mas hoje é possível vê-las com uma simples pesquisa no Google. As imagens são bastante fortes.

64 anos depois

Em 2019, três norte-americanos brancos postaram uma foto nas redes sociais no memorial dedicado a Emmett Till, no Mississippi, construído no local onde seu corpo foi encontrado, próximo ao Rio Tallahatchie. Os rapazes seguravam armas de fogo.

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Os três jovens eram estudantes da Universidade do Mississippi e foram mais tarde identificados: Howell Logan, Ben LeClere e John Lowe. Todos excluíram seus perfis nas redes sociais após a imagem viralizar e começar a ser investigada. Apesar de o memorial apresentar marcas de bala, a polícia afirmou na época que não era possível garantir se elas já estavam lá ou se os estudantes as haviam feito.

A segregação racial no Brasil

Falar sobre políticas baseadas em ideais higienistas, que classificam a humanidade em raças, é falar sobre o Brasil. “A constituição do Brasil enquanto país teve como um de seus traços mais marcantes a escravização de africanos e a dizimação de povos indígenas. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão, foi o país das Américas que mais recebeu africanos escravizados, e, quando a abolição ocorreu, não foi acompanhada de indenizações e políticas públicas compensatórias que integrassem a população negra ao sistema econômico da população livre e assalariada”, explica a professora de Sociologia Mika de Oliveira Rezende, em matéria publicada no portal Brasil Escola*.

Em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel, filha de Dom Pedro II. Ela concedia liberdade total aos escravos que ainda existiam no Brasil, abolindo assim a escravidão – mas apenas na teoria. Os escravos foram entregues à própria sorte, libertos sem nenhum tipo de política de integração social ou indenização histórica. “O escravo libertou-se, ficou ao sol por um breve momento, e então retornou a escravidão”, afirma o sociólogo W. E. B. Du Bois.

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Para Ricardo Corrêa, professor e especialista em Educação Superior, a Lei Áurea não passou de uma “mentira cívica” e o dia 13 de maio não é sobre celebrar, mas sobre refletir a respeito da realidade do racismo no país. O abismo socioeconômico que hoje existe no Brasil tem relação à uma questão racial estrutural. Por exemplo, de acordo com um estudo realizado pela ONG britânica Oxfam, chamado A Distância que Nos Une – Um Retrato das Desigualdades Brasileiras, os negros e os brancos só terão uma renda equivalente em 2089.

 

Atualmente, os negros são 71,7% dos jovens que abandonam a escola, segundo pesquisa do IBGE, sendo que a maioria afirma ter precisado largar os estudos para começar a trabalhar e ajudar a família. Isso porque a taxa de desemprego que assola a população negra é 53,8% maior que a que assola a população branca (63,7% contra 9,9%). O racismo e a falta de oportunidades é refletido no número de jovens negros mortos no Brasil: eles constituem 78,9% dos 10% dos indivíduos com chances maiores de morrerem por homicídio, como mostra o Atlas da Violência 2017, parceria do Ipea e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ou seja, de cada 100 pessoas assassinadas no país, 71 são negras – e, geralmente, jovens negros de baixa escolaridade. Mas as mulheres pretas também são as principais vítimas de homicídios motivados por questões de gênero (feminicídio), assim como são as principais vítimas de violência doméstica (58,68%) e obstétrica (65,4%). Os dados são da Central de Atendimento à Mulher.

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“Aqui está a fruta para os corvos arrancarem, para a chuva recolher, para o vento sugar, para o sol apodrecer, para as árvores derrubarem. Aqui está a estranha e amarga colheita”. (Trecho da canção de protesto Strange Fruit, composta por Lewis Allan e eternizada por Billie Holiday)

 

*REZENDE, Milka de Oliveira. “Segregação racial”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/segregacao-racial.htm. Acesso em 12 de maio de 2021.

 

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