Como o ‘estatuto do nascituro’ pode afetar a vida de meninas e mulheres

Explicamos, em 5 pontos, como este projeto de lei prejudica o acesso ao aborto legal e direitos reprodutivos

Por Bruna Nunes, Andréa Martinelli Atualizado em 30 out 2024, 15h15 - Publicado em 21 dez 2022, 19h49
aborto estatuto do nascituro
Há um movimento crescente em pautar o acesso aos direitos reprodutivos no país, em especial, por parlamentares da bancada religiosa e conservadora no Congresso Getty Images/Getty Images

Talvez você tenha visto nos últimos dias que a discussão sobre direitos reprodutivos e interrupção da gravidez se popularizou com a hashtag #NãoaoEstatutoDoNascituro nas redes sociais. Ela é parte de uma estratégia do movimento de mulheres e da bancada feminina para chamar atenção a um projeto de lei que entrou em pauta na Câmara dos Deputados, em Brasília, e  pode afetar diretamente a vida de meninas e mulheres ao proibir o direito ao aborto em qualquer ocasião. 

Este projeto, apresentado em 2007, é chamado de Estatuto do Nascituro. A gente explica: por definição, o termo “nascituro” significa “ser humano já concebido, cujo nascimento é dado como certo”. O PL ganhou este nome porque prevê direitos fundamentais e o mesmo peso jurídico ao embrião ou feto do que uma pessoa nascida e viva. 

 

Em uma tentativa de aprovar este projeto ainda em 2022, a bancada conservadora e religiosa na Câmara colocou ele em pauta novamente na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CMulher), mas a votação foi adiada por duas vezes após movimentação da bancada feminina junto à organizações do movimento feminista.

Ainda não há previsão de que volte à pauta e, como o ano legislativo termina amanhã, quinta-feira (22), é provável que entre apenas na pauta de 2023. Mas você provavelmente deve estar se perguntando: CAPRICHO, de que forma o Estatuto pode afetar a vida de meninas e mulheres no país? Quais são os direitos que podem ser afetados com ele? E porque ele prejudica o acesso ao aborto legal?

Abaixo, a gente responde essas e outras perguntas em 6 pontos. Vem com a gente:

1. Quando o projeto entrou em pauta?

Há um movimento crescente em pautar o acesso aos direitos reprodutivos no país, em especial, por parlamentares da bancada religiosa e conservadora no Congresso. O Estatuto é uma delas. Ele foi apresentado em 2007 e tem como objetivo principal estabelecer que o feto, antes mesmo de nascer, tem direito à vida, à saúde, ao desenvolvimento e à integridade física. Mas ele bate de frente com o que é previsto em lei e com o Código Penal. 

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No Brasil, o aborto é considerado um crime, mas sua permissão é prevista em três casos:

  1. gravidez de risco à vida da gestante;
  2. gravidez resultante de violência sexual;
  3. anencefalia fetal (após decisão do STF)

No documento original da proposta, criado pelos ex-deputados Luiz Bassuma e Miguel Martini o aborto é definido como uma atrocidade, mesmo em casos de “crimes cometido por seus pais” – ou seja, em casos de gestações provenientes de estupro, em que o agressor é entendido como figura paterna.

O tema é analisado na Câmara há 15 anos e já reúne 22 projetos de lei com conteúdo semelhante. Na tentativa de acelerar a votação no fim de mandato da atual legislatura, o tema entrou em pauta no dia 14 de dezembro e gerou mobilização nas redes sociais e também por parte de parlamentares contrários ao projeto, que articularam ações para barrar ou atrasar a votação.

Até o momento, a votação foi adiada e não há previsão de que volte à pauta. Isso porque o ano legislativo – ou seja, o recesso parlamentar – começa amanhã, dia 22 de dezembro.

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2. Por que o ‘Estatuto do Nascituro’ afeta o direito ao aborto?

A gente explica: o texto do projeto aumenta as barreiras de acesso ao aborto legal no Brasil. Isso já sabemos, certo? Mas ela acontece porque o projeto cria uma confusão jurídica sobre quando o aborto pode ser realizado, apesar de não proibir expressamente o aborto em seu texto. Afinal, o que está em questão é a vida do feto. Mas sim, ele afeta diretamente a possibilidade de realizar o procedimento em caso de estupro ou risco de vida à gestante e é prevista desde 1940.

O projeto diz que ficaria proibido, “sob qualquer pretexto, motivo ou razão, inclusive ato delituoso praticado por algum de seus genitores, aplicar qualquer pena ou causar qualquer dano ao nascituro”, além de atribuir ao embrião ou ao feto, “plena proteção jurídica”, “com absoluta prioridade”, contribuindo para reforçar a ideia de que qualquer ação ou procedimento voltado à interrupção da gestação poderá ser punida por representar “atentado, por ação ou omissão” ao próprio feto.

3. O projeto diz que “incitação ao aborto” é crime

O projeto também propõe alterações no Código Penal, qualificando o crime de aborto como hediondo – em geral, quando cria repulsa na sociedade – e modificando os artigos 124, 125 e 126 que a ele pertencem. Com esta alteração, as penas de reclusão para a prática do aborto aumentariam de 1 a 3 anos; reclusão de 6 a 15 anos e reclusão de 4 a 10 anos. 

Emanuel Pinheiro (MDB-MT) relator do projeto, ainda recomenda, que seja incluído o projeto de lei 883, de 2022, da deputada Carla Zambelli (PL), que cria o crime de incitação ao aborto, o que pode aumentar o risco de criminalização das mulheres e dificultar não só o acesso ao aborto legal, mas também a criação de políticas públicas de saúde reprodutiva.

4. Ativistas e entidades trabalharam para adiar votação

Algumas manifestações de entidades da sociedade civil e ativistas pelos direitos das mulheres, contrárias do projeto, produziram e entregaram à Comissão da Mulher uma nota técnica analisa ponto a ponto o Estatuto e argumenta que sua aprovação “representaria uma agressão fatal a conquistas democráticas do país”. Uma coisa bem séria, mesmo.

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O documento é assinado por 11 entidades, entre elas Rede Feminista de Saúde, Campanha Nem Presa Nem Morta, Frente contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, Anis – Instituto de Bioética, Marcha Mundial de Mulheres e Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep).

“A análise deixa claro que o objetivo da normativa não é proteger a vida dos fetos, como faz crer, mas, sim, controlar a sexualidade e a reprodução das mulheres e demais pessoas que gestam, violando seu direito fundamental de autonomia sobre os próprios corpos”, reforçam as organizações em texto.

Enquanto isso, nas redes sociais, hashtags fizeram barulho, como #EstupradorNãoÉPai e #CriançaNãoÉMãe. Elas lembram que o aborto legal é uma questão de dignidade e saúde pública, e que esse direito não está por acaso previsto em lei, foi conquistado.

Para o movimento de mulheres e parlamentares da bancada feminina, a ideia de atribuir direitos ao embrião parte de uma concepção abstrata, ou seja, nada concreta de que “ele” tem o mesmo status jurídico de pessoas nascidas e vivas.

Entidades médicas ainda alegam, que este é um entendimento anticientífico e que viola o Estado laico e os tratados internacionais que garantem os direitos das meninas, mulheres e demais pessoas que gestam.

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5. Mas como isso afeta a minha vida, CAPRICHO?

Dados do Fórum de Segurança Pública (FBSP), que produz relatórios sobre segurança pública no país, mostram que o Brasil não é um país tão seguro para meninas e mulheres quanto imaginamos: ao menos uma mulher é estuprada a cada 10 minutos; e cerca de 19 mil meninas de 10 a 14 anos se tornam mães todos os anos, muitas após serem vítimas de violência sexual.

Pois é. Restringir ainda mais o acesso ao aborto no país seria obrigar meninas e mulheres que engravidam após uma violência ou que estão grávidas e com risco de vida ou até com fetos sem viabilidade fora do útero a manterem a gestação – o que é considerada uma segunda violência por especialistas no tema. Ao dar proteção integral ao nascituro, a lei pode proibir a interrupção da gravidez mesmo que seja para preservar a saúde ou a vida da menina ou mulher.

Um exemplo disso na prática é que, recentemente, a Justiça de São Paulo negou o acesso ao aborto a uma mulher cujo feto não tem chances de vida fora do útero com base nos direitos do próprio feto – lembrando que já explicamos acima que não há entendimento formal de que esta é uma figura jurídica. 

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, a magistrada alegou que direitos da mãe não podem se sobrepor aos do nascituro, mesmo com o corpo médico alegando que a continuidade da gestação poderia trazer riscos físicos e psicológicos para a mãe. Depois disso, a jovem recorreu da decisão e o caso será analisado pela 10ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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