Cinema tem o poder de ‘mudar mente das pessoas’ ao contar novas histórias
É este olhar feminista que move a cineasta Dainara Toffoli, diretora de 'Manhãs de Setembro' e da série 'As Five'. E nós conversamos com ela sobre
Para Dainara Toffoli, que trabalhou na direção das séries “Manhãs de Setembro” (Prime Vídeo*) e “As Five” (Globoplay), o mercado audiovisual tem dado cada vez mais importância à representatividade – de gênero, raça e orientação sexual. E esse movimento tem acontecido não só para as telonas, mas também para os bastidores das produções, com equipes cada vez mais diversas. E isso é super importante para que a gente conte e consuma histórias sob outras perspectivas.
Em conversa com a CAPRICHO, Toffoli contou que, para ela, esse movimento tem acontecido porque há uma “janela de oportunidades”, ou seja, um maior interesse do mercado e também das produtoras. Um combo que, segundo ela, tem surtido efeito, viu?
“Eu lembro que contabilizando a equipe toda nós tivemos mais de 70% de mulheres e em todo o elenco da série”, contou à CH, referindo-se ao trabalho em “As Five”. Para ela, sem isso “a representatividade fica minúscula e a falta de espelhamento é uma sensação de que aquele que está lhe vendo não tem lugar no mundo.”
Mas tem lugar, sim. Inclusive, a trajetória de Toffoli reflete essa representatividade: ela ingressou no mundo do cinema – e da publicidade lá em 1989, quando entrou para a Casa de Cinema de Porto Alegre. E, ah, ela também é formada em jornalismo pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). As mulheres com quem teve acesso durante essa trajetória a marcaram profundamente.
O primeiro trabalho que ela assinou, na época como estagiária, foi o filme “Ilha das Flores”, de Jorge Furtado, um curta conhecido por uma profunda crítica social. Ela também participou de diversas campanhas publicitárias ao longo de sua carreira – algo que, para ela, a ajudou a adentrar no mercado audiovisual até chegar onde está: no lugar de diretora.
No início deste ano, Dainara esteve presente no GLAAD Media Awards (um evento superimportante que reconhece iniciativas e produções que enaltecem o universo LGBTQ+), em Los Angeles, para representar a equipe de “Manhãs de Setembro”. Ela contou tudo para a gente sobre essa produção e também refletiu sobre sua carreira e também deu dicas para você, que sonha em trabalhar com o audiovisual.
É muito importante a gente ver diversidades de representação. Ou seja, temos personagens lésbicas, trans e gays como protagonistas, cheios de camadas.
Dainara Toffoli
“E o audiovisual tem esse poder de mudança, né? Os jovens manipulam a câmera e editam. Fazem todo o processo. Isso aumentou a visibilidade e ajudou na luta por reconhecimento, por existência. E o cinema é muito bom para isso, para mudar a mentalidade das pessoas”, afirmou. E é mesmo, não é?
Ela garantiu que, se “Manhãs de Setembro” tiver uma terceira temporada – o Prime ainda não confirmou -, ela estará presente na direção! Além disso, ela não confirmou os rumores de que a série seria transformada em um filme. Se você é fã como nós, só resta ficarmos na expectativa (e torcida), né?
Leia a entrevista completa que fizemos com ela:
CAPRICHO: Como foi participar do GLAAD Media Awards e ver a série ‘Manhãs de Setembro’ ser indicada como Melhor Drama?
Dainara Toffoli: Foi uma experiência muito impressionante. E eu acho que a gente só teve a dimensão completa do evento quando chegamos lá. É uma organização extremamente importante que luta para atuar em todas as frentes em relação às questões LGBTQ+. E só de estar participando de um evento com Manhãs de Setembro, que foi a única série de língua não-inglesa que foi selecionada nas categorias principais, fez toda a diferença. Toda a equipe que participou desse projeto fez a diferença. E esse produto final foi resultado do trabalho colaborativo de todas as pessoas, capitaneadas pelo Luiz Pinheiro, eu, a produtora e o canal.
Como você enxerga as semelhanças e diferenças de momento político e também sobre o trabalho audiovisual entre o Brasil e os EUA?
Existem alguns paralelos. Primeiro, infelizmente, o Brasil lidera o ranking de mortes de pessoas trans. Enquanto que os EUA estão em segundo lugar. Além disso, nós temos muitos projetos de lei desde o início do ano a nível municipal, federal ou estadual contra os direitos da comunidade LGBTQ+. E nos EUA isso também acontece.
Agora, sobre as diferenças, no contexto audiovisual isso fica mais evidente. A gente chega em Los Angeles e aqui todo mundo respira cinema. E eu acho que estamos avançando, mas ainda temos um longo caminho para conseguir mais recursos e até pensar em estratégias, principalmente após o lançamento das produções para capitalizar o máximo que dá. Nos EUA, existe um trabalho muito forte de campanhas gigantescas. A gente precisa aprender a se fazer mais visível, sabe?
Principalmente porque temos produções muito boas, né? E isso não é de hoje.
Com certeza. Temos excelentes produções. Mas eu acho que podemos aumentar ainda mais o número. Isso porque nós ficamos com pouquíssimas produções nesses últimos anos por causa do último governo que eu não quero citar aqui o nome [a entrevistada refere-se ao ex-presidente Jair Bolsonaro]. E só quem trabalha no meio sabe o quanto demora para conseguir captar recursos para um filme. Querendo ou não, as séries tem uma velocidade mais rápida nesse sentido.
Eu, por exemplo, demorei dez anos para captar recursos para o meu longa (Mar de Dentro, 2020). Quando eu voltei a olhar para o roteiro eu precisei mudá-lo inteiro. Isso porque em dez anos a sociedade muda completamente.
E o audiovisual tem esse poder de mudança, né? Os jovens manipulam a câmera e editam. Fazem todo o processo. Isso aumentou a visibilidade e ajudou na luta por reconhecimento, por existência. E o cinema é muito bom para isso, para mudar a mentalidade das pessoas.
Como foi o convite para dirigir Manhãs de Setembro?
Eu brinco que o Luis Pinheiro recebeu o convite quando o projeto ainda era uma folha de papel. E tinha uma preocupação de trazer mais mulheres para a equipe. Eu vejo que a nossa sociedade hoje em dia está muito preocupada com representatividade e isso é muito importante. Foi em função disso que eles foram atrás de uma diretora mulher.
Depois, eu assisti ao teste da Liniker e eu entendi a série. A gente está vivendo uma janela de oportunidade, né?
Você acha que estamos conseguindo aumentar a presença feminina, de pessoas pretas e LGBTs também atrás das telas? Com equipe e tudo mais?
Eu acho que temos mais representatividade hoje porque as produtoras estão mais abertas a ter mulheres e porque os clientes estão mais abertos a ter também. Eu acho que é um movimento em conjunto mas, faz, sim, total diferença ter mais mulheres em posição de comando.
E eu tive a sorte de encontrar nos espaços onde trabalhei muitas mulheres fortes. Como por exemplo no meu primeiro filme que participei, o “Ilha das Flores”. E ali produtora foi a Nora Gular. Uma mulher extremamente forte e importante pro cinema brasileiro. Eu passei a ver essas mulheres como mentoras. E elas passaram a me ver como alguém que estava de uma certa maneira recebendo orientação e durante muitos anos sempre que eu tinha que tomar uma decisão profissional eu ligava pra elas. Talvez eu não fizesse isso se fosse um homem, sabe?
Qual a importância de termos histórias diversas sendo retratadas na telona de uma maneira real e não apenas com narrativas estereotipadas?
É muito importante a gente ver diversidades de representação. Ou seja, temos personagens lésbicas, trans e gays como protagonistas, cheios de camadas. Porque senão a representatividade fica minúscula e a falta de espelhamento é uma sensação de que aquele que está lhe vendo não tem lugar no mundo. E ver pessoas diversas ganhando prêmio, se expressando de maneiras brilhantes, dizendo coisas que você consegue reconhecer com mais profundidade, porque compartilha outras camadas de experiência é muito importante. Nesse sentido, Manhãs de Setembro foi realmente um marco no audiovisual. E eu acho que é uma série que ainda vai ganhar mais e mais importância no mundo.
Algo que sempre ouvimos é que os personagens não são caricatos. A Cassandra quer ter a independência dela. Ela quer ser capaz de prover a vida dela, ela quer cantar, ter um relacionamento amoroso e ganhar o seu dinheiro.
Quais dicas você daria pra meninas e meninos que sonham em trabalhar com audiovisual?
A principal dica que eu daria é de não menosprezar nenhuma, nenhuma oportunidade, sabe? Porque, por exemplo, quando eu tive as minhas primeiras oportunidades fui entendendo o processo de se fazer um filme, por exemplo.
E tá tudo bem não ter 100% de segurança. Durante a minha carreira eu percebi que quem tem muita vontade de mostrar segurança acaba tendo, na verdade, muito menos segurança. E pode acabar, no longo prazo, encurtando o processo de possibilidades de avançar, sabe? Porque a gente não senta em cima das decisões. A gente tem que seguir fluído e ouvir a nossa voz interior.
Não acredite nos modelos. Eles são reducionistas. Faça o seu próprio caminho e acredite nele até o fim.
*As vendas realizadas através dos links neste conteúdo podem render algum tipo de remuneração para a Editora Abril.