Via de mão dupla, a representatividade importa até quando é “sem querer”
Em 2022, a CCXP bateu também o recorde de Artists' Valley mais representativo da história, e coversamos com artistas sobre diversidade nas HQs
Na última quarta-feira (15), o Omelete confirmou a edição de 2023 da CCXP, após anunciar que, neste ano, a feira havia batido seu próprio recorde e reunido quase 300 mil pessoas em quatro dias de evento.
Dentre as atrações do maior festival de cultura pop do mundo, o Artists’ Valley, área dedicada a artistas – em especial, brasileiros -, tem grande destaque e, na CCXP22, foi o “vale” mais representativo de toda a história, com artistas diversos, que expuseram obras diversas.
Enquanto Hugo Canuto, autor de Contos dos Orixás, exibia suas artes que têm como protagonistas os orixás do Candomblé, algumas mesas atrás, André Inácio estreava na feira, com seus quadrinhos do gênero Boy’s Love.
E se a Flávia Gasi expunha orgulhosamente o segundo volume do álbum Isso é coisa de mulher, que brinca com a psicologia do machismo reverso, Alice Pereira era reconhecida por seu livro, o Pequenas Felicidades Trans. Sem contar Kado, cartunista que criou um Homem-Aranha gordo inspirado nele mesmo!
Conversando com esses artistas, pude notar que a representatividade é uma via de mão dupla: ela é importante para quem lê e para quem escreve. “Mais importante do que termos HQs com temática LGBTQIA+, é termos autores LGBTQIA+, pois não adianta se a temática for desenvolvida por pessoas que não pertencem à comunidade, e que acabam criando histórias e personagens estereótipos. Então, é importante divulgarmos e consumirmos material produzido por essas minorias, para termos histórias autênticas que realmente aproximem o leitor da nossa realidade“, disse Alice, que é uma mulher trans.
Aliás, um dos momentos mais especiais da CCXP vividos por mim foi justamente a entrevista com a autora. No meio do nosso papo, um homem interrompeu gentilmente para comprar a HQ Pequenas Felicidades Trans para a sobrinha de 15 anos, que está passando pela transição e coincidentemente também se chama Alice. É só presenciando um momento como este que a gente tem a real dimensão da importância da representatividade em todos os universos da nossa cultura.
Reparei também que, por mais que as histórias fossem de ficção, elas tinham sempre algo baseado em fatos reais. Para Flávia Gasi, isso é justamente o que determina o sucesso da escrita: “Quando eu escrevo, eu escrevo sobre mim, sobre coisas que eu vivi. Por mais que a gente coloque isso em ficção, histórias de fantasia, a gente está sempre falando sobre si, e é o que eu recomendo para os meus alunosm inclusive! Que eles falem sobre si. Porque falar da vivência do outro é sempre menor. Você nunca vai falar com tanta capacidade, vedade e coração. O processo de escrita é um processo de construção, reconstrução, geração e parto, em que eu vou descobrindo essas coisas que habitam em mim e, às vezes, habitam o outro também, mas sob o meu olhar”, opina.
André Inácio concorda e diz que sempre gostou de histórias em quadrinho, e que começou a criar as suas durante a adolescência, quando não encontrava muitas obras que fugissem do padrão eurocêntrico (com protagonistas brancos e heterossexuais). “Histórias LGBTQIA+ feitas por pessoas da comunidade tem um peso diferente, porque falamos o que vivemos”, afirma. “É importante que a gente tenha representatividade de todos os tipos, formatos e trabalhos. Mas, neste momento, é muito importante que as pessoas que façam parte dessas minorias sociais estejam sob os holofotes”, complementa Gasi.
O artista soteropolitano Hugo Canuto vai além na questão eurocêntrica, explicando que, por questões estruturais da sociedade, culturas muito antigas são menos conhecidas que culturas europeias – embora sejam tão ou mais interessantes quanto. “A importância de representar através de uma arte de linguagem universal, que mistura imagem e texto, uma filosofia e espiritualidade de matriz africana é imensa! Como baiano e adepto do Candomblé, para mim, tudo isso é algo próximo, mas, para milhões de pessoas, por questões de racismo estrutural e intolerância religosa, se mostra distante“, explica.
E até mesmo quando não é pensada, a representatividade se faz relevante. Por exemplo, o Kado, autor de Gordo Aranha, criou o quadrinho durante a quarentena, para se distrair. Ele é inspirado nele e na sua família, e o artista confessou que não imaginava que as pessoas fossem se sentir tão representadas por um super-herói fora do padrão. Ou seja, a crítica satírica aconteceu meio que sem querer!
“Voltei a desenhar para ocupar minha mente durante a pandemia. Comecei desenhando a minha família, criando tirinhas com meus filhos, minha esposa e nossa calopsita. Um belo dia fiz uma tira em que me visto de Homem-Aranha. Foi um sucesso danado na internet! Todos começaram a pedir novas tiras com o personagem e foi assim que nasceu o Gordo Aranha“, relata o carioca, que, nos anos 90, fez barulho criando a revista em quadrinhos do do Planet Hemp, a Hemp Family Comix, que lhe rendeu um processo por apologia às drogas.
São mais de 150 anos de histórias em quadrinhos no Brasil e mais de 500 anos de múltiplasvivências. Exatamente por isso, não faz sentido continuar reproduzindo padrões de um universo nerd pra lá de ultrapassado, que por muitas décadas foi sinônimo de machismo e LGBTfobia. “É uma evolução termos mais espaço em um evento do porte da CCXP, mas há ainda muito a ser feito, principalmente pelas editoras e o mercado formal, onde os lugares ainda são ocupados majoritariamente por homens brancos cis. Nosso espaço ainda está muito restrito ao mercado alternativo e a maioria de nós não consegue ter um alcance além de nossa bolha”, termina Alice Pereira.