“Quando me apaixonei por Marina foi tudo muito grande, diferente do que eu conhecia”. Foi assim que a escritora e jornalista Gabriela Soutello começou nossa entrevista. Aos 15 anos, no dia 19 de agosto, sem saber que era Dia Nacional do Orgulho Lésbico, ela beijou sua melhor amiga. Hoje, aos 28, no Dia da Visibilidade Lésbica, ela conta como esse momento transformou sua vida, fala sobre seus projetos lançados, livros e conselhos sobre descobertas da sexualidade na adolescência.
O primeiro beijo é sempre marcante. Parece que alguma coisa transformadora acontece dentro da gente, que a boca fica toda babada, que geral vai saber o que aconteceu. Não é verdade, mas que algo muda, não há discussão. “Já tinha dado um primeiro beijo, cerca de um ano antes, em um menino. A Marina, não. Mas, de certa forma, meu beijo aos 15 com ela foi um primeiro beijo também. Como quando você expande a consciência. A abertura para um universo de encaixe – mas também de medo, de vergonha e de culpa, especialmente àquela época. Até hoje não sei explicar a bagunça que senti. Vez ou outra ainda sinto reverberar, em outros formatos. Talvez eu passe a vida tentando descrever de um jeito possível”, conta.
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É possível que um dos principais dilemas da adolescência seja: será que estou gostando do meu melhor amigo? Ou da minha melhor amiga. Entre borboletas no estômago e caraminholas na cabeça, desejos e inseguranças, certezas e incertezas, a pergunta que não quer calar é: será que aquela pessoa sente o mesmo por mim? “Marina era minha melhor amiga desde os 13, morávamos no mesmo bairro, e, apesar de não estudarmos na mesma escola, nos ligávamos quase todos os dias (por telefone fixo, rs), e, quando não, nos mandávamos SMS e nos falávamos no MSN. Um dia, tomei coragem e perguntei se ela beijaria uma menina. Disse que sim. Eu perguntei: ‘A fulana?’ [aquela menina que ela admirava]. Ela respondeu: ‘Sim, mas não só’. Eu respirei um quilo de ar, me tremia toda, e perguntei: ‘Você me beijaria?’. Deve ter demorado uma hora naqueles segundos de ‘digitando’, mas ela respondeu mais um sim“, lembra Gabi, que não se aquietou até que o beijo acontecesse.
E aconteceu, aos 15, depois de ter um sonho com a amiga que a fez acordar ofegante e sentir uma coisa esquisita e empolgante ao ouvir I Kissed a Girl, da Katy Perry, pela primeira vez. Hoje, além de músicas, temos um cenário mais efervescente de filmes, séries e livros sobre a temática LGBTQIA+, nas produções audiovisuais, teatrais e em novelas. Em 2013, rolou o primeiro beijo gay da Rede Globo, entre os personagens Félix e Niko, em horário nobre, na trama Amor à Vida. “As primeiras referências lésbicas que eu tive foram assistindo a filmes e séries extremamente estereotipados, e mais voltados para públicos masculinos. Só mais velha fui conhecer autoras como Cassandra Rios, Alice Walker, Audre Lorde, Monique Wittig e Adrienne Rich. De 2010 para cá, as publicações de livros voltados para o público LGBTQIA+ cresceram absurdamente, e tudo faz parte desse reflexo social, das possibilidades que foram sendo construídas e reiteradas (e compradas) para que pudéssemos ter mais espaço. A questão é que hoje tem inúmeros livros sendo feitos por nós, contando histórias fora da ótica heterossexual, que sempre foi a nossa referência. Sou feliz por dizer que hoje, finalmente, tenho referências“, celebra a autora do livro Ninguém Vai Lembrar de Mim, publicado em 2019 pela Editora Pólen/Jandaíra.
A primeira obra de Soutello foi contemplada pela 1ª Edição do Edital de Publicação de Livros Para Estreantes da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e venceu o Prêmio Mix Literário, do Festival Mix Brasil. Ela aproveita para indicar outros livros de autoras que se relacionam com mulheres para ler: Cartas Para Luísa, de Maria Freitas; O Amor Não é Óbvio, de Elayne Baeta; e Amora, da Natália Borges Polesso. Neste ano, Gabriela lançou a coletânea Antes Que Eu me Esqueça: 50 Autoras Lésbicas e Bissexuais Hoje, pela Editora Quintal, da qual fez a curadoria. Ela é composta por poemas e contos de autoras de todo o Brasil, e a capa foi feita também por uma artista lésbica, a Júlia Bertulha.
Escrever, para a Gabi, como para muitas mulheres, é um ato de resistência. Ao dividir suas palavras com o mundo, ela abre caminhos para que meninas e mulheres tracem o seu próprio, menos sós, mais confiantes. “Eu ainda estou aqui. Não passou. Sigo, seguimos, resistindo, rasgando espaços, existindo muito”, expressa sua sensação. Ler é se encontrar, se inspirar, achar referências, se apaixonar por novas histórias e pela sua própria, entender que, por mais sozinha que você se sinta, tem muita gente ao seu lado. Ler é receber conselhos, assim como esse que a escritora dá a seguir, especialmente para você que está descobrindo sua sexualidade agora: “Fique próxima de pessoas que te acolham sendo quem você é. Busque essas referências, não só sobre sexualidade, mas as que reforçam suas raízes. Voltar para dentro, e para a história das que vieram antes de nós, nos impulsiona a criar confiança para sermos, corajosamente, quem somos. E se proteja. Apesar dos tempos terem mudado, e melhorado, ainda estamos no Brasil, em 2021, e ainda estamos no mundo. O patriarcado está longe de cair. Há uma ascensão absurda também de um extremismo repleto de ódio e intolerância. Se cuide, física e mentalmente“.
E, se você chegou até aqui se perguntando como terminou a história da Gabriela e da Marina, saiba que o final foi feliz. Elas namoraram por quatro anos, dos 15 aos 19, depois se afastaram um pouquinho, mas hoje seguem sendo melhores amigas.