- 17 de setembro, Dia Mundial de Limpeza das Praias e uma ótima oportunidade para responder a pergunta que dá título à matéria de hoje – que, por sinal, você pode ler ouvindo a música Eu Sou do Mar, do Armandinho com participação do Vitor Isensee. #OFuturoÉPreservação
Certa vez, assistindo a uma palestra de Lawrence Wahba, escutei a seguinte frase: “Não existe falar ‘os oceanos’, é o oceano, uma coisa só”. Parece óbvio e até meio questionável, uma vez que na escola aprendemos o nome de três oceanos (Atlântico, Índico e Pacífico), e dois grandes mares (Glacial Ártico e Glacial Antártico). Mas a fala fez tanto sentido pra mim na hora, que foi como se mil luzinhas se acendessem na minha cabeça. É o famoso óbvio que precisa ser dito.
E por falar em óbvio, quando a gente discute limpezas de praias, todo mundo tem consciência que é uma ação muito mais simbólica que efetiva, certo? Afinal, não temos a menor condição de limpar uma praia a ponto de restaurá-la como ela era antigamente, como expõe Juliano Dobis, diretor Executivo da Associação MarBrasil, em entrevista para a coluna Ecos da Terra, da CAPRICHO.
Por outro lado, como ressalta Alexander Turra, professor titular do Instituto Oceanográfico da USP, responsável pela Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN), qualquer resíduo tirado do mar ou da praia é importante. Até porque, como pontua Janaína Bumbeer, Especialista em Conservação da Biodiversidade na Fundação Grupo Boticário, doutora em Ecologia e Conservação com foco em ambientes marinhos, “se você deixa ali, só vai acumulando cada vez mais”.
Talvez, até aqui, você não tenha lido nada de muito surpreendente e pode estar se perguntando: “Tá, então esses mutirões de limpeza de praia não adianta nada?”. E é aí que eu te respondo entragando um baita plot twist: adianta muito!
“O assunto lixo é o problema que mais conecta as pessoas ao tema oceano, e as pessoas só mudam de comportamento quando elas se engajam. E elas só se engajam quando elas percebem e vivenciam o problema“, explica Janaína, que ressalta a importância local dessas iniciativas de coleta: “A questão do lixo pode ser a pontinha do iceberg para as pessoas começarem a compreender todos os processos da importância do oceano para a economia, a saúde, e assim por diante”.
Há também a importância ambiental da movimentação. Segundo relatório da ONG Oceana, publicado em 2021, 50% de todos os animais marinhos já ingeriu algum tipo de plástico, sendo que 85% desse número é formado por espécies em risco de extinção. “Se a gente pensar que, de repente, um lixo matou um animal. Se esse lixo não estivesse no ambiente, esse animal não teria morrido”, exemplifica Juliano Dobis.
É evidente que, quando pensamos em proteger o oceano, de imediato se forma em nossa mente aquela imagem da tartaruga sufocada por um canudinho plástico – e daí nossa vontade de banir os plásticos da face da Terra. Bom, aqui entrego outro plot twist: isso só bagunçaria ainda mais as coisas.
“As pessoas precisam conversar com o lixo e entender de forma madura a questão, para não cair na armadilha de ficar apoiando política de banimento de canudo, que só serve pra eleger governador, não serve pra controlar o problema do lixo do mar de forma sistêmica”, afirma Alexander Turra, que ressalta a real importância dos cleaners up e dos mutirões de limpeza de praia: “Mobilizar e engajar pessoas. A gente não tem que mirar num mundo sem plastico; a gente tem que mirar num mundo com descarte racional do plástico”. Até porque, se baníssemos o plástico de vez, ficaríamos sem o Cerrado, uma vez que o algodão começaria a ser superexplorado. Também teríamos ao menos 300 mil desempregados no Brasil, que hoje trabalham nessa indústria. Sem contar que jogar plástico no oceano é mundialmente proibido desde a década de 70 – mas sempre há um jeitinho, né? As famosas artimanhas que criam falácias na Lei e favorecem aqueles que estão no topo da pirâmide. “É uma questão econômica. Quem tem poder econômico direciona sempre para que eles continuem tendo poder econômico“, alerta Dobis.
Aliás, aproveito aqui para traçar um paralelo com os tubarões, meus animais preferidos! Eles, como bons predadores que são, estão no topo da cadeia alimentar. Logo, se alimentam de animais menores. Como vimos anteriormente, a chance de peixes já terem ingerido plástico e outros descartes tóxicos é grande. Sendo assim, a chance de eles estarem contaminados também é grande. Uma vez no meio ambiente, o tubarão já está suscetível à contaminação e ingestação de lixo marinho. Só que, ao se alimentar, ele também acaba ingerindo tóxicos de outros animais, o que faz com que aconteça algo chamado bioacumulação. É por isso que o cação, que é tubarão, é altamente tóxico e faz um mal danado para a saúde humana. Sem contar que, na maioria das vezes, é uma espécie ameaçada de extinção.
Imaginemos agora que, no ambiente terrestre, todos nós somos tubarões. Apesar de estarmos longe de sermos predadores naturais de topo de cadeia, nós nos transformamos em predadores ao destruir a natureza com nossas artimanhas tecnológicas e sede de ganância. Daí vamos para a praia, tomamos um caldo e engolimos um pouquinho de água contaminada. Na sequência, decidimos pedir uma isca de peixe, pra dar uma beliscadinha antes do almoço, e ingerimos carne contaminada. Já foram encontrados microplásticos (fragmentos de partículas de polímero) no ar – o que nos leva a crer que podemos inalar esses poluentes enquantos fazemos aquela bela e saudável caminhada matinal – e até em placenta humana. Ou seja, não só os tubarões sofrem com a bioacumulação.
Saber de tudo isso pode deixar você muito bravo com as pessoas, quando, na realidade, você tem que ficar bravo com o Sistema. “A pessoa que limpa a praia não tem que sair reclamando que o povo não tem educação; ela tem que sair possessa da vida com a condição socioeconômica do país. Ela tem que refletir criticamente sobre os modos de produção e consumo, sobre os limites da economia circular… O oceano está doente porque a sociedade está doente, e não faz muito sentido a gente querer cuidar do oceano sem entender que a sociedade precisa de cuidado. A gente tem que botar a conta no Sistema“, instiga o professor Turra.
E é aí que a nossa conversa ganha um novo paralelo – e um bastante fofo, diga-se de passagem. Você já assistiu à animação da Disney Procurando Nemo? Sabe aquela parte em que os peixes, aprisionados em uma rede de pesca, trabalham em conjunto para conseguir se salvar e salvar uns aos outros? Cada um de nós representamos um desses peixinhos. Individualmente, podemos não fazer tanta diferença assim, mas, em conjunto, conseguimos realizar ações transformadoras! “Aqui em casa, eu penso em comprar as coisas a granel, para evitar embalagens descartáveis, por exemplo. Essa mudança de consumo de geração faz uma pressão enorme para que a indústria também mude. Porque existem invenções sendo feitas para limpar o oceano, mas precisamos ver uma forma de aumentar a escala delas e fazer com que a entrada de lixo no ambiente seja menor, se não ficamos enxugando gelo”, garante Dobis, diretor Executivo da Associação MarBrasil.
Janaína Bumbeer, doutora em Ecologia e Conservação, aproveita para lembrar que nossos pequenos atos diários podem ter um impacto gigantesco no oceano, que é o verdadeiro pulmão do mundo, responsável por metado do oxigênio que respiramos: “Qualquer escolha nossa vai impactar a natureza e o oceano, por mais que você more no interior do país e nunca tenha pisado em uma praia. Por exemplo, a roupa que eu escolho e coloco na máquina. Se ela é feita de derivado de petróleo, ela vai soltar fiapinho de plástico, microplástico, que vai acabar somando ao impacto do meu sabão, de todos os meus produtos de limpeza, que vão acabar indo para o sistema de esgoto, e a gente tem um problema muito grande de tratamento de água e esgoto no Brasil“, lembra.
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Novamente, a conversa cai na questão sistêmica. As fontes, os caminhos e os destinos dos lixos são complexos, porque são muitos. Tem o lixo internacional, gerado em embarcações de transporte, tem o lixo que chega ao oceano através da rede de esgoto, tem o minilixos, que vem de ocupações terrestres, como aquela sacolinha que foi jogada na caçamba e acabou parando no mar. E o lixo também diz muito sobre o comportamento de moradores locais e até de parcela da população! Por isso, o professor Turra ressalta a importância de conversarmos com o lixo, para entendermos que a coisa é muito mais complexa do que parece. “O lixo pode ficar na região costeira ou ir para o meio do oceano. Dependendo da densidade, ele flutua ou afunda. O que flutua, depois de um tempo, é colonizado por organismo marinhos, daí a a densidade muda e ele afunda também”, explicamente brevemente o docente.
E voltando àquela cena de Procurando Nemo, em que cada um de nós é representado por um peixinho lutando por sua sobrevivência, os cleaners up [que organizam as limpezas de praia] são justamente aqueles peixes que estão nas extremidades da rede de pesca, passando as coordenadas e gritando palavras de incentivo para que cada um de nós faça sua parte e o trabalho de formiguinha seja potencializado. “Parece que não tem solução, mas, da mesma forma que cada um fazendo sua parte pra prejuicar traz esse problemão, cada um fazendo sua parte pra ajudar, ameniza esse problema. E tem outra: como você vai cobrar de alguém que faça sua parte, sendo que você não está fazendo? Isso é pensar em sociedade, em coletivo. A poluição do oceano e das praias é a soma do erro de cada um; e a solução pode vir da atitude de cada um também”, incentiva Juliano Dobis, que tem a fala complementada por Alexander Turra, que adapta um trecho de O Pequeno Príncipe para concluir de forma brilhante o debate: “Você se torna eternamente responsável pelo lixo que cativa”.