Negra e do cursinho comunitário, Thamiris é o futuro da ciência no Brasil
Do Pré-Vest Marielle Franco para a UFRJ, Thamiris Bernardo é o começo do fim de uma engenharia marcada pelo homem branco e de classe média-alta
Dos 30 futuros engenheiros eletricistas da turma da Thamiris Bernardo na Universidade Federal do Rio de Janeiro, apenas oito são mulheres. Aos 20 anos, a moradora da Zona Norte da cidade carioca descobriu em qual faculdade gostaria de ingressar aos 15 anos, quando fez um curso para as Olimpíadas de Física no Centro de Tecnologia do Instituto de Física da UFRJ. Hoje, a medalhista da Olimpíada Canguru de Matemática Brasil e 1° lugar na Expotec 2019, mostra que o futuro da ciência no Brasil está longe de continuar ocupado majoritariamente pelo homem branco e de classe média-alta. “Essa falta de proporcionalidade é consequência da sociedade patriarcal que ainda se faz presente e afasta mulheres de seguirem carreiras científicas, principalmente no ramo das ciências exatas, ditando qual profissão uma mulher pode ou não ocupar”, opina.
Durante o ensino médio, Thamiris acordava às 6h para ir para a escola em que frequentava, o CEFET-RJ Campus Maria da Graça. Foi lá que a aluna inciou sua vida acadêmica. Foi o CEFET também que preparou a estudante para que ela concorresse em premiações, a preparou para a faculdade e a fez descobrir seu sonho e desenvolver seu potencial. À tarde, ela estudava e cumpria obrigações dos projetos que participava. Das 18h às 22h, se deslocava para o centro do Rio para o Pré-vestibular Comunitário Marielle Franco. “Como eu não tinha grana para entrar em um pré-vestibular particular, procurei alguns comunitários e foi a melhor coisa que eu poderia ter feito. Muito do meu crescimento pessoal eu devo a esse lugar e é muito prazeroso carregar na minha conquista esse projeto incrível, que vai colocar mais outros muitos estudantes periféricos dentro da universidade, cultivando sementes“, orgulha-se.
Ainda sobre sua passagem pelo CEFET, onde fez quatro anos de ensino médio integrado ao curso técnico de Automação Industrial, ela não teve uma única aula técnica dada por professoras. Na turma, tinha apenas sete colegas garotas. Inspirada por nomes como Nina da Hora (Cientista da Computação) e Gedeane Kenshima (Engenheira e Técnica em Automação), a estudante foi encontrar outras referências ao conhecer e mais tarde ingressar no projeto Mulheres Negras Fazendo Ciência, situado no CEFET e na URFJ, que trabalha com ensino, pesquisa e extensão desde 2019. “Ele é composto por mulheres negras em diversos níveis acadêmicos, que vão do ensino médio a professoras doutoras. As principais missões desse grupo são difundir a produção científica de mulheres negras, compartilhar a trajetória dessas cientistas, denunciar as estruturas que fazem essas mulheres serem minoria no corpo acadêmico e formar novas cientistas negras”, conta. Coordenado por Aline Silva Dejosi Nery, Ana Lúcia Nunes de Sousa, Luciana Ferrari Espíndola Cabral e Mariana da Silva Lima, o projeto realizava atividades de extensão e oficinas em escolas e faculdades antes da pandemia. Agora, promove a discussão por meio de transmissões remotas. “A experiência de participar de projetos, escrever relatórios e artigos, e ter participações em eventos pode te dar um certo destaque em uma seleção de Iniciação Científica, por exemplo. Além disso, minha relação com a ciência no ensino médio me ajudou a definir qual curso eu faria na faculdade e me preparou academicamente para me adaptar mais rápido nesse novo espaço. Espero que essa vivência com a ciência antes da graduação seja cada vez mais possível e acessível para todas as meninas“, encoraja a graduanda de engenharia.
Para Thamiris Bernardo, o Mulheres Negras Fazendo Ciência carrega uma importância não só individual, mas também social. Afinal, é através da disseminação do debate e do compartilhamento de vivências femininas na ciência que o sonho de uma menina negra se tornar cientista é alimentado. “As mulheres, durante muitos anos, foram privadas do acesso a escolas e universidades, já que esses espaços eram exclusivos dos homens e, seguindo o raciocínio machista, elas não teriam capacidade para ocupá-los. Essa omissão trouxe como consequência uma ciência majoritariamente masculina, colocando a mulher cientista em segundo plano. Segundo o IBGE 2010, as mulheres negras representam pouco mais de 1/4 da população brasileira e, pensando num modelo ideal, as instituições manteriam essa proporção em todos os cargos. Porém, a realidade é bastante diferente. De acordo uma pesquisa realizada pela jornalista Lola Ferreira, disponibilizada no site da empresa Gênero e Número, as mulheres negras [pretas e pardas] são apenas 3% dos professores de programas de pós-graduação no Brasil, considerada a posição mais elevada na academia“, contextualiza a estudante.
Usar a meritocracia como argumento para justificar a escassa presença de mulheres, negras ou não, no ambiente científico também é uma grande falácia, muito porque “o machismo, por mais que ultimamente seja bastante discutido e analisado, ainda se faz presente e contribui na manutenção desse afastamento da mulher na ciência. Já o racismo, analisado estruturalmente, vai criar obstáculos institucionais para tornar cada vez mais difícil que a pessoa negra consiga ingressar e/ou se manter na carreira acadêmica. E no meio dessas duas problemáticas, encontra-se a mulher negra que, segundo a intelectual Kimberlé Crenshaw, sofrerá as consequências de forma simultânea, enfrentando a interseccionalidade na discriminação de raça e gênero”, explica Thamiris, que garante que, mesmo com as dificuldades, as mulheres as mulheres constroem currículos e carreiras incríveis, ocupando cada vez mais o ramo científico.
Analisando seu papel como mulher, a carioca acha muito difícil ter tranquilidade quando se vive no 5º país que mais comete feminicídio no mundo, compartilhando a vivência de outras mulheres que desde pequena sentem receio de andar sozinhas, que repensam quais roupas devem usar e que se sentem acuadas na presença de muitos homens. “Hoje, confesso que os receios e questionamentos continuam existindo, e outras percepções me foram apresentadas ao me enxergar como uma mulher negra na sociedade, já que a adição de características étnico-raciais criam vivências diferentes para mulheres negras em comparação às brancas. Apesar disso, tenho me empoderado e me colocado cada vez mais no mundo, entendendo a mulher que sou como um corpo político e capaz de reivindicar meus direitos e meu lugar no mundo“, partilha a estudante brasileira, cujo maior incentivo sempre foi sua mãe. “Ela engravidou muito jovem e, consequentemente, abdicou de muitos sonhos e objetivos. Para que eu e minha irmã não tivéssemos dificuldade de alcançar nossos propósitos, apostou todas as fichas em nós duas. Com o tempo, nossa condição socioeconômica melhorou e ela conseguiu apostar em si mesma. Agora, ela tem duas filhas em universidades públicas”, celebra.
Para que o debate sobre gênero e raça vá além, é preciso que as pessoas estudam. Para Thamiris, apenas com o estudo e o exercício do olhar empático que vamos parar de bater na mesma tecla e prosseguir. “Sair da zona de conforto e se desprender da própria ignorância é um processo lento e até doloroso, mas vale ressaltar que só a conversa não é o suficiente para mudarmos a conjuntura. Oportunidades devem ser dadas para esses grupos minoritários a fim de que eles enxerguem o mundo fora dessa cadeia de opressões. A filósofa Sueli Carneiro apresenta no livro Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil [compre o livro aqui] que, para uma mulher branca ter as mesmas possibilidades de emprego que um homem branco, ela precisa de cinco anos de vantagem na escolaridade. Já uma mulher negra precisa de oito a onze anos de estudo. Logo, se uma mulher negra estiver participando de um processo seletivo que você é responsável, dê uma maior atenção a ela, pois ela precisou se desdobrar para conseguir alcançar o mesmo nível dos demais“, dá o papo.
Não é magia nem meritocracia, é ciência e não se deve duvidar dela!