Continua após publicidade

Cena final de Coisa Mais Linda é mais significativa do que você imagina…

Sim, esta matéria contém spoilers. Sim, só não entendeu o recado final quem, definitivamente, é alheio ao conceito de feminicídio.

Por Isabella Otto 6 abr 2019, 10h11

Sim, os rumores são verdadeiros. Esta matéria contém spoilers. Se você não se importa, pode pular para o segundo parágrafo. Se você se importa… Bem, o aviso foi dado. Entretanto, talvez seja interessante ficar sabendo do final da primeira temporada de Coisa Mais Linda, seriado nacional da Netflix. Não do final literal, mas daquele que aparentemente nem todos entenderam o quão significativo é. Mas a gente vai contar isso aqui pra você. E depois você pode repassar para geral. Combinado? Recado dado, vamos ao que interessa.

Reprodução/Reprodução

Dirigida por Heather Roth e Giuliano Cedroni, a série conta a história da Bossa Nova através da perspectiva de quatro mulheres: Maria Luiza (Maria Casadevall), Adélia (Patrícia Dejesus), Lígia (Fernanda Vasconcellos) e Thereza (Mel Lisboa). Tudo se passa no final de década de 50 e início dos anos 60, quando o Rio de Janeiro estava efervescendo culturalmente e a política vivia um momento de esperança e exaltação com Juscelino Kubitschek no poder e seu lema “cinquenta anos em cinco”. Aliás, há diversas referências ao gênero musical na trama: Lígia também é uma música de Tom Jobim, a personalidade de Thereza nos remete à personalidade da musa inspiradora da canção Tereza da Praia, de Jobim e Billy Blanco, Chico é a representação de João Gilberto, conhecido como o criador da Bossa Nova, e, inclusive, Coisa Mais Linda é o nome de uma música interpretada pelo compositor que hoje está com 87 anos. Essas são apenas algumas das muitas referências, contudo, nossa intenção aqui discutir a cena final da temporada de estreia. E, para isso, precisamos ~começar pelo começo~: o que é ser mulher.

Os 60 anos de Bossa celebrados no seriado também são um aviso de que a realidade de muitas mulheres continua a mesma, apesar das muitas vivências. Machismo no ambiente de trabalho e em casa, machismo vindo de outras mulheres, racismo, abuso sexual e psicológico, feminicídio. F-E-M-I-N-I-C-Í-D-I-O. É sobre isso que a última cena do seriado trata: os crimes de ódio praticados contra pessoas do sexo feminino, estimulados pelo machismo enraizado que é, na maioria das vezes, camuflado por justificativas assombrosas. Em Coisa Mais Linda, o crime é cometido por Augusto Soares (Gustavo Vaz), um cara agressivo e frustrado profissionalmente que tenta se lançar na carreira política numa tentativa de se provar como homem e filho, já que sua mãe, uma machista e racista de carteirinha, o menospreza na cara dura. É uma realidade triste, mas não justifica os dois tiros dados por ele durante o réveillon de 1960. Um acerta a ex-mulher, Lígia, e o outro, Malu, dona do clube de jazz.

No Brasil, a cada duas horas uma mulher é morta. Segundo o Mapa da Violência, o país ocupa a 5ª posição no ranking dos 83 países mais perigosos para ser do sexo feminino. Levantamentos do Ministério Público também mostram que 66% das mortes ocorrem dentro do ambiente familiar e são cometidas por uma parceiro, seja namorado, marido ou ex. Ciúme e sentimento de possessão são os principais estimulantes. São crimes tão brutais que, muitas vezes, custamos acreditar. Talvez tenha sido isso o que os diretores quiseram retratar com um final tão improvável para tantos. Não é. Não se você tentar ir um pouquinho além do “ao pé da letra”. Não se você entender que, ao longo da série, as quatro personagens principais despertaram muito ódio em homens que se sentiam ameaçados por elas, seja por seu empreendedorismo, por seus textos feministas, por seu talento e por sua cor de pele. O final da primeira temporada de Coisa Mais Linda não é exagerado ou sem nexo. O final de Coisa Mais Linda é real e crível.

LÍGIA, A QUE SÓ QUERIA CANTAR
Os gêneros musicais podem ter mudado, mas até hoje mulheres são julgadas por cantar, sejam por suas performances em cima do palco, por seus clipes, por suas composições, por seus posicionamentos na mídia. Augusto, que gostaria de se tornar prefeito do Rio, não podia ter uma mulher cantora. A primeira-dama não podia frequentar ambientes essencialmente habitados por homens, como boates. Ele não podia ter uma mulher mal-falada ao seu lado. Lígia era dele, devia ser dele quando ele quisesse, e não podia pensar e/ou agir por conta própria. Ela não tinha capacidade para tanto. Pelo menos, era o que Augusto achava. Augusto foi contrariado. O que ele fez? Agiu como um “verdadeiro machão” e “meteu bala”.

Reprodução/Reprodução

MARIA LUIZA, A AMIGA QUE DESCOBRIU O EMPODERAMENTO FEMININO
Mas, para o digníssimo Augusto, a amiga tóxica, dona de um clube de música, que levava a esposa Lígia para o mau caminho. Malu começa o seriado sofrendo muito depois de ter sio largada pelo marido. Talvez nem estivesse doendo tanto assim, mas ela estava com medo do que os outros podiam pensar dela. Porque, apesar de o homem ter traído ela, a abandonado e levado todo seu dinheiro, quem levaria a culpa no final? Pois é. Malu descobriu a sororidade e o empoderamento feminino, deu a volta por cima, abriu um negócio, negociou com homens, ganhou o reconhecimento deles… Malu incomodou. Incomodou tanto que também “levou bala”.

Reprodução/Reprodução

ADÉLIA, AQUELA QUE TODOS PENSAVAM SER A EMPREGADA
A trajetória de Adélia é uma das mais interessantes e representativas. Ela mora no morro e é aquele pinguinho de samba que existe na Bossa Nova, uma música da Zona Sul, feita majoritariamente por homens brancos privilegiados. A personagem é negra, mãe solteira, dá duro para sustentar a casa, sofre diariamente com o racismo e o machismo, tendo que conquistar seu espaço na sociedade não só como mulher, mas como mulher negra, e mostra que protagonismo dentro de um lugar de fala é fundamental.

Continua após a publicidade

Reprodução/Reprodução

THEREZA, A QUE SABE O QUE É FEMINISMO
A música de Jobim e Blanco diz o seguinte: “Tereza é da praia, não é de ninguém”. Não existe melhor definição para a personagem, que, de início, era a única mulher em uma redação cheia de homens e aparentemente mantinha um relacionamento aberto com o marido. Thereza se interessava por homens e mulheres, e defendia que as amigas deveriam ter autonomia para decidir sobre seus corpos – até Lígia resolver fazer um aborto, e Thereza se lembrar de que não pode ter filhos e ficar contra ela. Pode parecer contraditório, mas é uma sutileza do ser humano, uma amostra de que ser mulher é ser colocada à prova a todo instante, e precisar lidar com conflitos internos que muitas vezes vão contra aquilo que você defende. É a relação razão-emoção. É a diferença entre igualdade e superioridade.

É claro que não dá para afirmar que Lígia e Malu tenham morrido. Até porque, se uma segunda temporada da série for confirmada, a maioria das pessoas vai querer vê-las na trama. Mas o final da primeira temporada de Coisa Mais Linda é um retrato de uma realidade que não é nem de longe tão suave quanto a batida da Bossa Nova. No Brasil e no mundo, Lígias, Malus, Adélias e Therezas continuam sendo mortas por Augustos Soares por cometerem o “crime” se ser mulher.

Publicidade