Junho de 2013 e o legado pelo ‘direito à cidade’ para a nossa juventude
Há dez anos, as "Jornadas de Junho" mudaram muita coisa e tem efeitos políticos até hoje
nde você estava em junho de 2013? E pelo que reivindicavam as pessoas que foram às ruas nessa data? “Não é só pelos R$ 0,20 centavos” e o “Gigante acordou” foram algumas das frases que pipocaram nos cartazes dos manifestantes que participaram desse evento que entrou para a História do nosso país e deixou legado e contradições para a nossa juventude.
Caso você não se recorde, os protestos que deram início à chamada “Jornadas de Junho” há dez anos, aconteceram inicialmente pelo aumento de passagem de ônibus em R$ 0,20 na cidade de São Paulo. Em pouco tempo, porém, as manifestações chegaram a outras capitais do país e logo se tornou um espaço para reivindicar não só esse ponto, mas para expressar insatisfações gerais na Saúde, Educação e, também, contra a Copa do Mundo que o Brasil veio a sediar em 2014.
Para a nossa geração, que nasceu em meados de anos 2000, porém, a memória desses protestos pode aparecer de forma tímida ou até confusa (talvez até aqui você esteja se perguntando: mas do que você está falando, CAPRICHO?). Mas o fato é que existe um divisor de águas para as mobilizações que vieram depois, como o movimento de estudantes secundaristas de 2015 – beneficiado, por exemplo, pelo passe livre estudantil alcançado após tudo isso que aconteceu em 2013, viu?
Bora fazer um mergulho histórico com quem viveu todo esse período? Para isso, a gente foi conversar com Roberto Rolim Andrès, que é urbanista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele acompanhou o estopim de Junho de 2013 em Belo Horizonte, capital mineira, e também no Brasil como um todo.
Ah, e importante ressaltar aqui: dez anos após ter vivenciado toda essa movimentação, ele publicou um livro em que analisa os fatores que levaram aos protestos chamado ‘A razão dos centavos’, pela Editora Zahar (R$ 84,66, Amazon)*
“Lembro de sentir que existia uma demanda por direito à cidade. E aí eu lembro que viajei para Roma e fiquei dois dias sem olhar a internet. Quando eu cheguei lá, o Brasil que eu existia havia implodido”, com Andrès em um papo super explicativo por telefone com a reportagem da CAPRICHO.
“A gente não sabia exatamente o que ia acontecer no dia seguinte, sabe? Todas as pessoas passaram a ficar vidradas, e a acompanhar as mobilizações e manifestações, além de toda repressão policial. E a comunicação naquela época era muito focada no Facebook.”
Pois é, hoje o Facebook parece peça de museu, né? Mas, imagina só tudo isso acontecendo hoje com a chegada de outras redes sociais? E olha só o que mais ele contou sobre toda essa movimentação:
“Tinha muita gente abaixo dos 25 anos que estava indo em um protesto pela primeira vez na vida. A gente não fala de Junho de 2013 como a revolta do centavos ou a Revolta do Busão como a gente fala de 1984 como Diretas Já. Isso porque a pauta política de Junho de 2013 ficou mais enigmática.”
Tão enigmática que até hoje pesquisadores como ele seguem estudando tudo o que rolou (e olha a gente aqui falando sobre isso também, né?). Conversamos com Andrès sobre os pontos-chave para entender tudo o que a envolveu os protestos.
Vem ler a entrevista completa abaixo:
CAPRICHO: Você se lembra o que sentiu de ver as manifestações acontecendo? Quais eram as expectativas?
Roberto Andrès: A estabilidade a qual estávamos acostumados parecia não existir mais. A gente não sabia exatamente o que ia acontecer no dia seguinte, sabe? Todas as pessoas passaram a ficar vidradas, e a acompanhar as mobilizações e manifestações, além de toda repressão policial. E a comunicação naquela época era muito focada no Facebook.
Lembro da sensação de surpresa por estar vivendo a história e vendo ela acontecer. São aqueles momentos que ficam marcados como momentos de mudança.
CH: Como você vê a pauta de mobilidade sendo debatida na época e como ela vem sendo debatida hoje? A gente tem cidades no Brasil que já tem tarifa zero, por exemplo.
Roberto Andrès: A mobilidade urbana piorou muito nesse período. Em muitas cidades o tempo médio de deslocamento nos ônibus dobrou. Em BH, por exemplo, esse tempo passou de 36 minutos para quase uma hora, ou seja, é um problema real, mas que a sociedade não debatia na época. Com Junho de 2013, a imprensa e as pessoas começam a falar sobre a questão do transporte, que pode ser sintetizada na frase ‘não é só pelos R$0,20 centavos’.
Eu estudei sobre as rebeliões pelo transporte no Brasil. A primeira delas foi em 1880 e aconteceram várias ao longo do século 20. E todas elas têm algo em comum: elas pegaram os políticos de surpresa, todas elas abalaram a popularidade do governo e geraram dias de muita fúria, com as pessoas quebrando ônibus e arrancando paralelepípedos do chão, por exemplo.
A cidade de Caeté, em Minas Gerais, enfrentou uma baita crise do transporte público durante a pandemia de covid-19 porque caiu o número de usuários e reduziu a receita da empresa responsável e o prefeito não sabia qual solução daria. Foi então que eles viram uma oportunidade para implementar a tarifa zero, a partir da ideia de um dos participantes dos protestos de junho e da tarifa zero em BH. Eles testaram essa política [de tarifa zero] e foi um sucesso. Hoje, a gente tem uma série de cidades na região metropolitana de Belo Horizonte que implementam essa solução. Esse é um exemplo de como uma movimentação social trouxe mudanças institucionais. Elas nem sempre são imediatas, mas trazem mudanças de mentalidade que vão se desdobrar lá na frente.
Tinha muita gente abaixo dos 25 anos que estava indo em um protesto pela primeira vez na vida. A gente não fala de Junho de 2013 como a revolta do centavos ou a Revolta do Busão como a gente fala de 1984 como Diretas Já. Isso porque a pauta política de Junho de 2013 ficou mais enigmática
Roberto Andrès, urbanista e professor da UFMG
No Brasil, temos 74 cidades que implementaram a tarifa zero. E é gigante o que isso significa para juventude, de poder sair à noite, de poder ir para uma praça, um shopping, para casa de algum amigo, para escola. É um monte de gente que tá podendo fazer coisas que antes não fazia.
CH: Vamos aprofundar isso que você falou. Qual foi o impacto dessa mobilização para a nossa galera?
Roberto Andrès: As passagens no Brasil são caríssimas para o padrão de vida da maioria da população que mora nas periferias e que às vezes tem que pegar dois ônibus para se locomover. Trata-se de uma libertação sócio-cultural que a gente ainda está começando a entender. Temos relatos de quem esteve nas revoltas secundaristas em São Paulo, em 2015, e falou sobre a importância do passe livre para estudantes, que já tinha sido implementada graças a 2013.
As pessoas que participaram do movimento [das revoltas secundaristas] contam que foi muito importante essa medida do passe livre para que os estudantes pudessem circular livremente pela cidade. Ou seja, os resultados são muito variados e traz essa emancipação, uma liberdade de uso da cidade e de organização para batalhar por causas.
CH: E sobre as pautas difusas que nasceram em 2013? Como você enxerga esse surgimento de pautas e como isso de alguma forma também dificultou o movimento como um todo naquele período?
Roberto Andrès: Eu mapeei mais de 6 mil cartazes que foram expostos nas ruas justamente para poder ter um raio-x do que aconteceu naquelas manifestações entre os dias 17 e 20 de junho. E nesse período podemos ver quatro grupos que apareceram com muita força: um sobre mobilidade urbana, outro sobre copa do mundo, outro pela saúde e educação e um último pela anticorrupção
Além disso, tinha um quinto grupo, que pouca gente lembra, com uma agenda feminista e LGBT expressiva contra o Marco Feliciano, que era presidente da Comissão de Direitos Humanos e que tinha uma proposta absurda de cura gay.
Tinha muita gente abaixo dos 25 anos que estava indo em um protesto pela primeira vez na vida. A gente não fala de Junho de 2013 como a revolta do centavos ou a Revolta do Busão como a gente fala de 1984 como Diretas Já. Isso porque a pauta política de Junho de 2013 ficou mais enigmática. E isso dificultou a organização dos movimentos, principalmente pela repressão policial que veio em seguida.
E a repressão veio muito forte. Às vezes a gente não se lembra dela, mas muita gente foi presa e revistada. Já no início de 2014, houve muitos protestos em São Paulo e no Rio de Janeiro que a polícia chegava e prendia mais de 100 pessoas de uma só vez com muita truculência. Isso tudo foi minando esses movimentos com a chegada da Copa do Mundo.
CH: E você acha que dá para repetir o feito de 2013? Será que teremos manifestações nessa mesma proporção novamente? E seriam elas despertadas pelo transporte e mobilidade urbana de novo?
Roberto Andrès: A história não tem marcha ré, né? O encontro para que Junho de 2013 acontecesse é muito específico, e é único na história do país.
A gente acompanhou entre 2002 e 2010 a inclusão de dezenas de milhões de famílias, essas pessoas saíram do patamar básico da extrema pobreza de não ter o que comer. Essas mesmas pessoas passaram a ter acesso à internet e acesso à cultura. Formou-se uma geração que passou a aspirar uma forma de vida mais robusta. Elas não estão mais lutando contra fome, já querem sair da universidade e ter um bom emprego, elas querem ter um transporte de qualidade, Educação e Saúde de qualidade.
Esse choque foi muito característico daquele período. As pessoas passaram a aspirar mais. O próximo ciclo de rebeliões que a gente tiver muito provavelmente vai ser muito diferente das anteriores, né? Agora, o tema do transporte sempre pode acender revoltas.
*Preços consultados em 30 de junho de 2023. Sujeitos a alterações. As compras feitas através destes links podem render algum tipo de remuneração para a Editora Abril.