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É a primeira vez em 21 anos que a casa do BBB tem mais pretos que brancos

E isso diz muito sobre a sociedade

Por Isabella Otto 21 mar 2023, 10h01

“É a primeira vez que temos mais pretos que brancos na casa”, disse Gabriel Santana no BBB23, edição do reality show com maior quantidade de participantes negros (11 dos 22 selecionados).

Nos últimos anos, o número de confinados pretos aumentou consideravelmente, e ao que tudo indica a produção se inspirou em uma decisão da CBS, que, em 2020, decretou que o Big Brother dos EUA tivesse uma casa 50/50. Ou seja, metade branca e metade não-branca.

Quando algo do tipo acontece (em reality shows, novelas, séries ou filmes), há comentários corriqueiros em círculos de pessoas brancas, como “percebi mesmo”, “não sei para que isso agora” ou “tem muito preto mesmo”. Toda vez que escuto algo do tipo, rebato: “Ou será que antes tinha muito branco?”. A pessoa ou não sabe o que dizer ou se sente ofendida de alguma forma.

Por isso, que bom e que importante que a produção do programa está tendo esse olhar mais atento em um Brasil em que a maioria da população é preta. 56,1%, segundo o IGBE. Mas foi preciso 21 anos e 23 edições do reality para que a mudança começasse a ocorrer – e ainda a passos lentos, uma vez que o racismo estrutural segue agindo dentro e fora do reality.

Por exemplo, o tratamento que é dado às pessoas pretas no BBB, especialmente às mulheres. E não é de hoje que vemos uma divisão muito clara de reações, viu? Enquanto mulheres brancas têm uma personalidade forte e são reativas, as mulheres negras são agressivas, violentas e barraqueiras.

Sarah Aline destacou isso durante conversa com Gabriel e Marvvila. A participante também destacou a ausência da sensabilidade da dor para com as mulheres negras na casa, enquanto as brancas são acolhidas quase que de imediato. “Poucas pessoas entenderam o meu lugar de dor e não quiseram acessar isso”, disse sobre um episódio em que ficou indignada, como qualquer outra pessoa, mas foi taxada de raivosa. “A Sarah de verdade”.

Giselle dos Anjos Santos, pesquisadora e ativista, especialista em relações raciais, gênero e interseccionalidades, explica toda essa questão, que está muito entrelaçada ao conceito de colorismo. “No Brasil, o processo de miscigenação foi incentivado pelas autoridades, com o intuito de alcançar o branqueamento da população. Ou seja, a miscigenação, definida como uma marca positiva da nossa sociedade, representa, na verdade, um processo de violência e de subalternização de corpos negros, especialmente de mulheres negras”, diz.

O colorismo foi um conceito criado pela escritora afro-americana Alice Walker em 1982, como explica Giselle: “Ele aborda a questão da clivagem racial, onde pessoas negras de pele mais clara possuem menos desvantagens em relação a pessoas negras de pele mais escura, já que conseguem ser mais ‘aceitas’ e até mesmo ‘ascender’ em alguns contextos“. No BBB, também é possível ver essa distinção na seleção dos participantes e na aceitação que eles têm aqui fora.

Giselle ainda explica que a hierarquização entre pessoas negras mais e menos pigmentadas compactua com o racismo, que representa um sistema de poder, com caráter estrutural na sociedade brasileira, alicerçando todas as relações e instituições. “O mais importante é compreender que a população negra, que é soma de pretos e pardos, diz respeito a algo muito maior do que a questão da tonalidade da pele dos indivíduos”, afirma.

Outra questão que todo esse cenário faz a gente refletir é sobre a “fama” dos participantes – pelo menos, aquela medida por número de seguidores, que a gente sabe que impacta em fechamento de contratos e valores de publicidade.

Por exemplo, a usuário do Twitter Preta Pretinha (@Nanalicius) fez uma comparação entre participantes brancos que já deixaram a casa e participantes pretos que seguem no reality. Mesmo aqueles que saíram com rejeição têm muito mais seguidores que os brothers negros que seguem no jogo, alguns até tidos como novos favoritos, que custam a ganhar seguidores nas redes.

E se o Big Brother é um recorte da realidade, é importante lembrar que, em 2020, Thelma Assis, ganhadora do BBB20, precisou interromper uma live sobre as lições do programa e sua carreira, realizada na Glamour Brasil, para se manifestar contra comentários de ódio e de cunho racista que ela e a apresentadora (também uma mulher negra) estavam recebendo.

A sociedade também coloca constantemente à prova as pessoas pretas, em especial as mulheres, que já precisam se provar diaramente devido ao fator gênero. O fator raça intensifica a luta.

Sobre diversidade, vale destacar ainda a ausência de pessoas amarelas e gordas no Big Brother Brasil. Embora aqui a discussão seja focada no número recorde de participantes negros em uma edição do reality, não-brancos abraçam outras raças e etnias, e os corpos tidos como fora do padrão seguem não sendo representados.

E da próxima que você você ver alguém questionar o número de pessoas pretas em espaços que até então eram majoritariamente ocupados por brancos, não ache curioso, do tipo “ah, ninguém nunca questionou o fato de um filme ter só brancos, né?“. Porque, sim, já questionaram, mas todos esses questionamento foram silenciados ou relativizados. Não há nada de curioso ou inexplicável. O que há é racismo e pode ser explicado pelo estrutura social do mundo em que vivemos – e dos programas aos quais assistimos.

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