Você já deve ter reparado na quantidade de filmes e séries sobre crimes reais que andam saindo por aí, não é? Até criadores de conteúdo focados sobre o assunto começaram a surgir. Na Netflix, a minissérie sobre o canibal Jeffrey Dahmer, estrelada por Evan Peters, completou a marca de mais de 496 milhões de horas assistidas na plataforma e chegou a ficar em segundo lugar como a produção mais assistida do serviço de streaming.
É assustador perceber como criminosos acabam se tornando personagens ficcionais no imaginário do público. Mas, porque será que produções do tipo tem tanto apelo?
Segundo a psicóloga com especialização em psicologia forense, Bruna Dutra, uma das explicações para isso, é o fato de todos termos impulsos de agressividade. “Consumir esse tipo de conteúdo é um modo de aliviar essas sensações de forma saudável.”
Izabela Palassi, estudante de criminologia, explica que existe até uma área da criminologia que estuda o assunto. “A violência sempre foi algo que chama a atenção (…) No estudo da criminologia, temos a criminologia midiática, que fala justamente sobre como as pessoas gostam de acompanhar esse tipo de tragédia, para depois construirem uma narrativa punitivista e, através do senso comum, justificarem os crimes.”
Criadores de conteúdo ajudam a aumentar o interesse pelo assunto
Mas, não são apenas especialistas que falam sobre o assunto, viu? Carol Moreira, criadora de conteúdo sobre true crime no podcast Modus Operandi, um dos mais ouvidos sobre o assunto da América Latina, revela que apesar de não saber exatamente o motivo pelo qual o assunto atrai tanta gente, já recebeu mensagens de seguidoras dizendo que ouvir o podcast as ajudam a saber como se proteger.
“Por que as pessoas se interessam por isso é justamente a pergunta de milhões, né? Ninguém sabe exatamente o motivo (…) Muitas mulheres que escutam nosso podcast falam que se sentem mais protegidas conhecendo essas histórias e sabendo formas de se defender, sabendo como outras vítimas conseguiram escapar”, explicou.
O podcast fez tanto sucesso que já virou até livro pela Editora Intrínseca, em que Carol e sua amiga Mabê Bonafé, que apresenta o programa com ela e foi quem teve a ideia de lançá-lo, entregam um guia sobre true crime, abordando os principais assuntos do tema.
Além de Carol, as youtubers Julia Cassini e Jaqueline Guerreiro são outros dois importantes nomes da internet no nicho de conteúdos sobre crimes reais. Em seus canais, as jovens falam de terror, casos reais e curiosidades bizarras. Ambas acreditam que o interesse surge da curiosidade de entender melhor o que motiva os criminosos a cometerem seus crimes. “Acho que como nunca faríamos essas coisas, é curioso pensar que alguém faria“, explica Julia Cassini.
Mulheres são as mais interessadas
Outro fato interessante sobre o consumo desse tipo de assunto é que a maioria do público são justamente mulheres. No caso do podcast Modus Operandi, 75% da audiência é composta pelo público feminino, e isso também se repete em podcasts de outros países, como o Wine and Crime e o All Killa no Filla com 85% de ouvintes mulheres, segundo o site Não Me Kahlo.
“Quando experimentamos níveis elevados de medo, muitas vezes podemos buscar conforto ao enfrentar esses problemas de frente. Sempre recorremos à narrativa de crimes como forma de compreender melhor os limites morais de nossa sociedade. Talvez para as mulheres haja um desejo de saciar o medo recorrendo a essas histórias”, contou Gemma Flynn, criminologista da Universidade de Edimburgo, em entrevista para a BBC.
Como tudo começou?
As primeiras obras do gênero, surgiram na Grã-Bretanha, por volta de 1550, através de panfletos sobre assassinatos e outros crimes. Porém, foi com a chegada da revista True Detective, lançada nos Estados Unidos em 1924, que o assunto se expandiu.
No Brasil, tudo começou através da rádio na década de 70 quando, usando uma abordagem pra lá de sensacionalista, alguns programas relatavam casos reais com a intenção de captar mais ouvintes. Na televisão aberta, alguns títulos marcaram história na década de 90, como o Aqui Agora, do SBT e o inesquecível Linha Direta, da Rede Globo – quem foi criança nessa época vai lembrar o quão temido esse programa era!
Na literatura, temos alguns títulos que se tornaram importantes no gênero, como o conhecido A Sangue Frio, de Truman Capote, publicado em 1966. A obra, acompanha o assassinato da família Clutter, no Kansas. O Helter Skelter: The True Story of The Manson Murders, de 1974, escrito por Curt Gentry e Vincent Bugliosi, que narra os crimes da seita liderada por Charles Manson e toda a investigação do caso.
E claro, não podemos deixar de falar dos títulos: Columbine, de 2009, que fala sobre o massacre na escola de Columbine e Ted Bundy: Um estranho ao meu lado, que foi escrito por Ann Rule, uma mulher que chegou a ser amiga e trabalhar com o serial killer antes de saber quem ele era de fato.
Para tentar entender o fascínio por esses assuntos, ainda podemos analisar o termo em alemão Schadenfreude, que é basicamente a alegria com a desgraça alheia. Aquele sentimento de alegria velada que está ligado ao fato de que algo ruim ter acontecido com outra pessoa e não com a gente, sabe?
Criminologistas atribuem nossa obsessão por true crime a Jack, O Estripador que em 1888 matou e mutilou pelo menos cinco mulheres em Londres. Seus crimes foram os primeiros a atrair a atenção global, em parte por conta das atrocidades que ele cometeu, mas, também, por ter sido na época em que os jornais de grande porte estavam em evolução.
Segundo a Academia Internacional de Cinema, a premissa do gênero é trabalhar com profundidade casos verídicos de crimes e investigações, expondo histórias e as transformando em obras audiovisuais, em livros ou podcasts. Normalmente, os filmes e séries trazem entrevistas, áudios dos processos, gravações feitas em tribunais, imagens da cobertura da imprensa, e, algumas vezes, até conversas com os próprios criminosos.
O aumento dessas produções é algo bom ou ruim?
Apesar de ter seu lado benéfico, afinal informa e alerta a sociedade, e até serve como uma forma de cobrar a justiça um posicionamento sobre os casos. Foi o que aconteceu com a popularização da série Mistérios Sem Solução, lançada pela Netflix em 2020, onde alguns casos chegaram a ser reabertos pela polícia por conta da repercussão do título.
Melissa Chan, jornalista do Time, escreveu um artigo chamado Real People Keep Gettin Re-traumatized’. The Human Cost of Binge-Watchin True Crime Series, onde alertou sobre como essas produções fazem com as vítimas revivam o terror que elas já passaram. No texto, ela reuniu casos onde familiares pediram para as produtoras abandonarem seus projetos de adaptação dos crimes que eles estavam envolvidos, mas acabaram não sendo escutados.
Um exemplo recente disso, foi com seriado Dahmer: Um Canibal Americano, o primo de uma das vítimas de Jeffrey Dahmer não gostou nada da produção e chegou a se pronunciar sobre ela em seu twitter. “Não estou dizendo a ninguém o que assistir ou não assistir, e sei que mídias sobre crimes reais são muito populares no momento, mas se você realmente está curioso sobre as vítimas: a minha família (os Isbell’s) está irritada para c*ralho com essa série. É nos traumatizar novamente, e para quê? Quantos filmes, séries e documentários precisamos?“.
I’m not telling anyone what to watch, I know true crime media is huge rn, but if you’re actually curious about the victims, my family (the Isbell’s) are pissed about this show. It’s retraumatizing over and over again, and for what? How many movies/shows/documentaries do we need? https://t.co/CRQjXWAvjx
Continua após a publicidade— eric perry. (@ericthulhu) September 22, 2022
“Recriar a minha prima tendo uma crise emocional no tribunal, na frente do homem que torturou e matou o seu irmão é DOIDO. DOIDO!“, continuou em outra publicação.
Like recreating my cousin having an emotional breakdown in court in the face of the man who tortured and murdered her brother is WILD. WIIIIIILD.
— eric perry. (@ericthulhu) September 22, 2022
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Eric ainda chegou a explicar que por conta dos crimes estarem em domínio público, normalmente, quem faz essas produções nem chega a consultar as vítimas, e, muitas vezes, como foi caso da família dele, elas só ficam sabendo quando a produção vai ao ar.
Outro fato assustador sobre essas produções, é que quando atores conhecidos por serem galãs como Zac Efron e Evan Peters são escalados para viver serial killers, o público parece romantizar os atos dos criminosos e confundir ficção com realidade. “Eu sou a única que acha que o Evan Peters como Jeffrey Dahmer é o serial killer mais gostoso de todos tempos?“
am i the only one who thinks Evan Peters as Jeffrey Dahmer is a fuckin hot serial killer ever pic.twitter.com/LmQ1bgdmAK
— soy boy (@azzurrO_Oberon) October 7, 2022
“Estou tentando não achar o Zac Efron bonito como Ted Bundy, mas estou falhando”, publicou outra internauta.
Trying not to find Zac Efron as Ted Bundy hot but FAILING pic.twitter.com/0vXBekkzcH
— Hannah (@freckldfeminist) May 3, 2019
Tal glamourização, fez com que Jeffrey Dahmer se tornasse trend no Tiktok, onde os usuários imitam os trejeitos do serial killer e ainda chegam a se fantasiar como ele para o Halloween, como citamos no início do texto.
@julialinharesbern 🙃 #fypシ #jeffreydahmer #trending #trend #namorados ♬ original sound – user31134750435
@fc_alvaro #jeffreydahmer #dahmer #trending #fyp ♬ PRACTICE – DaBaby
@maarcel.de Wer hat die Serie schon geschaut? #jeffreydahmer #scared #film #halloween #kostüm #outfit #jeffreydahmernetflix ♬ Psycho Killer – Talking Heads
@flawo_ #jeffreydahmer #netflix #evanpeters #serialkiller ♬ Dark Horse(抖音版) – 宸荨
Na hora de consumir tais conteúdos, o ideal é sempre nos atentarmos ao fato de que não é apenas um mero entretenimento, a história trata sobre a vida de pessoas reais que passaram por momentos terríveis e que merecem seu devido respeito.