Indígena, gay e aldeado: a luta do ativista Neimar Kiga por acolhimento
O jovem de 23 anos fala sobre a LGBTfobia institucionalizada e a vida na aldeia Meruri, no Mato Grosso: "Há 520 anos nós existimos e resistimos!"
“Não basta ser índio, tem que ser ‘viado'”. Este é um dos ataques que Neimar Kiga, de 23 anos, mestrando em Antropologia Social na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, mais recebe nas redes sociais. Por viver na aldeia Meruri, pertencente ao povo Boe Bororo, a internet é para o ativista uma faca de dois gumes: enquanto representa o lugar onde ele dá voz aos indígenas da comunidade LGBTQ+, ela é palco de manifestações de homofobia e racismo, que mexem com a autoestima do jovem. “Quando se fala em homossexualidade, pensam logo naquela pessoa que vive no ambiente urbano, de classe média e branca. É importante pensarmos também nos marcadores sociais da diferença, incluindo os recortes de raça/etnia, gênero e classe social. Por ser indígena [palavra que ressignifica “índio”, coberta de preconceitos], gay, de classe social menos favorecida e aldeado, isso me traz várias implicações como pessoa. Ser indígena está relacionado diretamente a estigmas, por pertencermos a uma sociedade racista, em que o indígena na maioria das vezes é considerado um atraso para o desenvolvimento capitalista. Viver em aldeia é uma vantagem, pois convivo com meus pares, compartilhando do mesmo modo de ser e viver de acordo com a lógica e tradição do meu povo. A partir do momento em que saio dela, são perceptíveis as dificuldades em relação a educação, cultura, oportunidade, autoestima, comunicação… Então, é necessário entendermos nossos privilégios enquanto pessoas, principalmente os não-indígenas. Hoje, reconheço meu privilégio enquanto homem, por ter uma formação em nível superior e ter liberdade para falar sobre minha sexualidade”, disse em entrevista para a CAPRICHO.
O pesquisador é um dos integrantes do Coletivo Tibira, que usa o Instagram como plataforma para divulgar informações sobre sexualidade indígena, compartilhar relatos pessoais, construir uma rede de contatos e levar a discussão para o movimento. “Temos vários representantes que estão na luta pelos nossos direitos, debatendo pautas necessárias. Porém, é escassa a representatividade dentro das discussões de gênero e sexualidade em contexto indígena. Até então, não tínhamos representantes como referência”, explica Neimar, que relembra que o primeiro caso de homofobia registrado no Brasil foi contra um indígena e ocorreu em meados do século XV: “Tibira, indígena do povo Tupinambá, assassinado em 1614, amarrado pela cintura à boca de um canhão a mando da missão religiosa. Escolhemos o nome do coletivo em referência a esse episódio da história do Brasil. Ressignificamos o nome e usamos como forma de luta e resistência. Nas representações que são feitas de Tibira, vemos uma pessoa forte e robusta. Atualmente, nós levamos essa força adiante”.
Apesar de já ter sofrido resistência de membros da família, que não aceitavam sua orientação sexual, Neimar acredita que o fato do seu povo ser matrilinear, ou seja, ter a filiação e organização social conduzida pela mãe/mulher, ajuda a tornar o ambiente na aldeia mais acolhedor e libertário. Hoje, o jovem pode ir e vir sem medo. De manhã, ele ajuda a mãe com os deveres domésticos. Depois do almoço, costuma descansar ou ir até o rio passar o tempo com as amigas. Às vezes, eles também sobem o “Morro da Raia”. À tarde, dedica-se aos estudos. À noite, volta a se reunir com as amigas. Antes da pandemia de coronavírus até rolavam jogos de futebol aos finais de semana. Apesar de tudo, a vivência de Neimar enquanto indígena e homossexual é marcada por lutas diárias. “Sabe-se que com a expansão do território europeu, não veio somente a burguesia, mas o machismo, o patriarcalismo, o capitalismo, o racismo e doenças para os povos originários desta terra. Falar sobre vivência é falar também sobre sobrevivência. Pensando na realidade do meu povo, a LGBTfobia foi institucionalizada pela Igreja Católica. A relação de poder instaurada pelos não-indígenas sobre nossos corpos e modo de vida no passado ainda hoje nos agride, mas estamos lutando para que, no futuro, tenhamos o direito de ser quem somos e viver nossas vidas com dignidade. Quero ser respeitado pela pessoa que sou, não por ter uma formação acadêmica”, desabafa.
Para o ativista, faltam políticas públicas voltadas à comunidade indígena LGBTQ+ e elas são de extrema urgência para evitar que mais vidas sejam perdidas. “Dentro de nossas aldeias, não há nada que envolva a comunidade. Não se fala em educação de gênero e sexualidade, em saúde mental, não existem ações de prevenção sexual direcionadas aos indígenas do movimento. Por isso, a necessidade da discussão, do debate, da reflexão. Pensando mais além, na inclusão dessas pautas em pastas da Saúde e Educação do governo”, explica.
Por ser indígena e gay, a homofobia que Neimar Kiga sofre é marcada também pela presença do racismo. Os índios de hoje continuam sendo índios, mas como querer que eles sejam os mesmos de 1500? “A cultura é dinâmica. Alguns elementos permanecem, outros são incorporados. Isso não faz de nós menos ou mais indígenas. Afinal de contas, estamos no século XXI, utilizando as ferramentas e instrumentos dos não-indígenas ao nosso favor. Ter acesso ao conhecimento do não-indígena incomoda, principalmente na reivindicação dos nossos direitos. Hoje, a caneta, a tecnologia e as redes sociais são nossas aliadas. A sociedade precisa saber quem somos de verdade para ir além da visão colonial e estereotipada frequentemente aplicada às populações indígenas. Somos mais de 300 povos, mas o não-indígena continua se referindo a nós como se fôssemos um só, sem considerar nossa pluralidade. Há 520 anos nós existimos e resistimos!“.