Harmonização íntima, skin care da vulva e o insalubre universo feminino

Nossa sociedade insiste no erro: querer dar pitaco sobre tudo, inclusive sobre a sua vulva, ao invés de se libertar de padrões ultrapassados e fake news

Por Isabella Otto Atualizado em 30 out 2024, 17h52 - Publicado em 17 mar 2021, 14h03
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CAPRICHO/Sestini/Reprodução

Dia desses eu abri meu e-mail de trabalho e numa sequência de poucas mensagens me deparei com quatro sugestões de pauta: uma falava sobre um sabonete íntimo com água micelar do Brasil, outra sobre estética íntima, uma terceira apontava os benefícios para a vida da mulher da harmonização íntima (parece que a facial está fazendo história, né?) e um último e-mail contava com empolgação sobre uma marca que estava vendendo o primeiro skin care íntimo do mercado. Isso mesmo, você não entendeu errado: skin care da vulva.

Harmonização íntima, skin care da vulva e o porre de mundo pras mulheres
Derivada do sânscrito, Yoni é uma palavra usada pelo feminismo para retratar o órgão sexual feminino por significar “passagem divina”, “lugar de nascimento”, “fonte de vida” e “templo sagrado”. Yulia Shlyahova/Angelina Bambina/Getty Images

Todas as indicações, como era esperado, traziam a opinião de especialistas sobre como os produtos têm substâncias que não alteram o pH vaginal e sobre como os procedimentos não são apenas estéticos, mas auxiliam na manutenção da saúde mental da mulher. Bacana, pensei comigo, realmente faz algum sentido. Afinal, eu tinha uma amiga que já na infância, quando a gente não deveria se preocupar com muitas coisas além de não deixar o bichinho virtual morrer de fome, tinha vergonha de tomar banho no vestiário da natação e/ou ficar pelada na frente das amigas porque tinha os pequenos lábios mais avantajados. Descobri isso porque um dia percebi o desconforto dela ao tomar banho comigo. Realmente, a “perereca” dela era diferente da minha, que era diferente da “perereca” da minha mãe, que era diferente da “perereca” da minha avó (eita, família que nunca ligou de ficar pelada na frente dos outros. Rs!). Mas eu achei que era algo natural, afinal sempre me ensinaram em casa que nossos corpos são diferentes e que essa é a beleza do ser humano: ser único.

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Mas percebi que a minha amiga pensava diferente. Hoje, confesso que perdemos o contato e não sei se o dilema dos grandes pequenos lábios dela continuou causando insegurança em sua vida. Talvez sim, especialmente na hora da primeira transa, ou talvez não. Talvez ela tenha desapegado e entendido que não havia nada de errado com ela ou com a sua região íntima. Me preocupa, porém, pensar que provavelmente ela tenha sofrido com isso durante a adolescência e parte da vida adulta, visto que o Brasil é o recordista mundial em cirurgias íntimas. E eu entendo que, realmente, em diversos casos, a mulher se sinta mais confiante após realizar um procedimento que “corrija” aquilo que ela entendia estar errado. E não há dúvidas de que isso tenha um impacto direto na saúde mental dela. Mas, ao mesmo tempo, eu fico me questionando se esse nosso lugar no pódio global não é estimulado por e-mails como esses que recebi, que acabam virando matérias que reforçam padrões estéticos e que ferram ainda mais com a autoestima feminina, assim contribuindo para a manutenção das indústrias de cirurgias plásticas íntimas e do mercado de cosméticos íntimos.

Sem contar que muitas dessas ofertas do mercado vêm de uma exigência masculina de que as mulheres precisam ter “a vulva perfeita”: depilada, lisinha, clarinha e cheirosa. E tudo isso é um grande absurdo, já que, assim como os mamilos, as vulvas são de cores, tamanhos e formatos diferentes. Quando você foge desse padrão imposto socialmente, e até racialmente, como “bonito”, “correto”, “aceitável” e “desejável”, você se torna automaticamente “feia”, “errada”, “inaceitável” e “indesejável”. Daí essa mesma sociedade te disponibiliza um leque de opções que prometem reverter esse cenário e te fazer recuperar a autoconfiança. Há quem diga que tenha resolvido se submeter a procedimentos cirúrgicos ou investir em produtos íntimos por uma vontade pessoal, mas ouso dizer que, por mais verdadeiro que esse sentimento possa vir a ser, desculpa, essa motivação nunca vai ser 100% pessoal. Até porque aquela coisa só te incomoda porque em algum momento você percebeu que ela era diferente daquilo que estava acostumada a ver por aí e que o diferente podia ser sinônimo de “com defeito”.

A vulva é úmida por natureza, a vulva tem cheiro, a vulva tem pelos, a vulva não tem um jeito certo de ser. Essa busca pela “vulva perfeita”, mesmo sendo irreal, pode causar muita frustração. Sem contar que há várias fake news que contribuem para essa cultura da “vulva perfeita”. Talvez a maior delas seja que relacionamos uma boa higiene com sua intensidade, ou seja, quanto mais produtos e mais lavagens, melhor. Na verdade, é justamente o contrário. Sua vulvinha precisa de um sabonete de glicerina bem básico para ser limpa na parte externa e apenas de água corrente na parte interna. E não precisa esfregar loucamente, viu? Ou passar produtos para deixá-la cheirosa. Ela precisa ser tratada com carinho e você precisar entender de uma vez por todas que a vulva tem cheiro de vulva. Se fosse rosa, tinha cheiro de rosa.

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Harmonização íntima, skin care da vulva e o porre de mundo pras mulheres
Hilde Atalanta, ilustrador do projeto The Vulva Gallery/Divulgação

Poderíamos ainda desenvolver longas linhas de raciocínio sobre como a retratação da “vulva perfeita” é problemática no sentido de incentivar a pornografia e a pedofilia. Dá só uma olhada na vulva retratada na ilustração acima, rosinha e sem pelos. Parece vulva de mulher adulta ou parece mais uma vulva de criança? Pois é… Embora a sociedade insista em impor padrões de beleza até sobre a sua região íntima, você nem sempre precisa aceitá-los, porque talvez seja a sociedade que precise encarar uma skin care de respeito para se livrar de todas as toxinas de sua cara de pau. 

Liberte a sua “perseguida”, pois querem cagar regras em cima dela também!

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