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Do luto individual ao coletivo: quais as fases, quanto dura e como superar

O luto é um processo vital e natural que está ligado à perda de alguém ou de algo, e é geralmente associado à morte de uma pessoa querida

Por Isabella Otto 8 Maio 2021, 10h05

Dizem que a morte é uma das únicas certezas da vida, e realmente ela é aquilo que une todos nós. Talvez, por ser algo tão certo, ela não devesse causar tanto medo. Ou talvez seja justamente o contrário: por ser algo do qual não podemos escapar, ficamos temerosos, fazemos teorias, arranjamos significados, fazemos até piada. Dependendo da crença e da religião, a morte tem um significado. Por exemplo, para o Cristianismo, ela é o início da vida eterna. O Espiritismo já acredita em reencarnação e o Judaísmo nem se ocupa da morte (os que ficam é que vão sofrer os impactos das ações daqueles que foram). O que mais assusta talvez seja imaginar um mundo sem a sua pessoa. Porque ele vai continuar existindo, só que você não vai mais estar aqui. Do nada, tudo acaba. Para quem fica, sobram as lembranças, o legado e o luto.

Ilustração de uma garota de cabelos longos e azuis sendo confortada com um abraço por uma rapaz de bochechas rosadas
Ponomariova_Maria/Getty Images

De acordo com o psicanalista britânico John Bowlby, que nasceu em 1907 e faleceu em 1990, o luto é a quebra de um vínculo que se dá por um processo de perda. “Ele acontece quando é preciso encerrar um ciclo, seja ele a morte, o término de um relacionamento, uma mudança brusca”, exemplifica a psicanalista Kélida Marques. Existe o luto pessoal, que é aquele sentido por uma pessoa, por exemplo, quando ela perde um ente querido muito próximo ou termina uma relação, e o luto coletivo, que é o que acomete comunidades em tempos de pandemia, guerra ou quando alguma figura pública muito bem-quista falece.

O luto em tempos de pandemia

A primeira semana de maio foi cruel. É difícil colocar assim na balança, pois a gente vem de um último ano muito pesado, mas tivemos a morte do ator e humorista Paulo Gustavo, que para muito representou o Brasil de hoje, sem motivos para sorrir, e a pandemia de coronavírus superando a marca de 417 mil vidas perdidas – muitas delas no último mês, para uma doença para a qual já existe vacina. “A morte e o luto são processos naturais. O problema é que a pandemia chegou com mudanças radicais, como a restrição e até proibição de visitas hospitalares, bem como velórios com poucas pessoas e tempo reduzido. Familiares e profissionais estão experimentando outros tipos de experiências, como despedidas via tablet ou celular, mas a adaptação é difícil e não houve tempo para ela, foi tudo muito rápido“, avalia Esther Angélica Luiz Ferreira, docente do Departamento de Medicina (DMed) da UFSCar.

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A médica coordenou um estudo recente realizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos que mostra que a angústia e o sentimento de perda de qualidade de vida são as duas coisas que mais vêm assustando os brasileiros. É uma eterna sensação de esgotamento e desesperança, que se torna ainda mais intensa diante da morte de figuras tão representativas, como do humorista Paulo Gustavo, e de declarações de autoridades que decidem por uma nação e seguem negando a existência e a mortalidade de um vírus que já matou mais de três milhões de pessoas no mundo. É como se estivéssemos à deriva. Para muitos, uma sensação de morte em plena vida.

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As fases do luto

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria, são cinco as fases do luto: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação. A questão é que não há um tempo estipulado para que elas terminem e algumas pessoas vivem mais de uma fase ao mesmo tempo. Há casos de lutos que duram três semanas e outros que chegam a durar até dois anos. “O primeiro ano após a perda é o mais difícil, porque é nesse ano que ocorrem todos os primeiros aniversários sem a pessoa próxima. Isso não significa que seja necessário um ano exato para superar a morte. Um processo de luto é bem sucedido e finalizado quando a pessoa consegue superar a perda e seguir em frente. Não é que ela vai esquecer a pessoa, pois as lembranças e a ausência continuarão. Entretanto, a perda não vai mais ocupar um lugar de destaque [na vida dela]“, explica a psicóloga Juliana Batista, do HCor, para o site do Dr. Dráuzio Varella.

A psicanalista Kélida Marques completa a fala da colega dizendo que é muito perigoso reprimir sentimentos na tentativa de parecer forte ou de mascarar o luto. “As emoções constituem uma parte fundamental em nossa vida e é preciso vivenciá-las em sua plenitude. Buscar parecer ser forte o tempo todo, ao longo do tempo, irá acarretar desconfortos físicos, mentais e até afetar o funcionamento de alguns órgãos. Se deixarmos, o acúmulo de tristeza afeta os pulmões, o medo excessivo afeta rins e a bexiga, e a tensão emocional constante pode agravar condições estomacais e hepáticas“, garante. Isso porque a maioria das nossas ações está interligada aos nossos sentimentos, e em tempos de crise é muito fácil somatizar tudo.

Ilustração de uma mulher de longos cabelos azuis, triste, segurando um guarda-chuva vermelho, para se proteger de uma chuva que só cai sobre ela; representação da depressão

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Quando o luto vira doença

Se a pessoa demora muito para passar por todas as fases do luto ou empaca em uma das quatro primeiras, não chegando assim à fase da aceitação, é possível que ela tenha desenvolvido o que a psicologia chama de “luto complicado”, uma espécie de luto crônico. O diagnóstico é delicado, justamente porque cada pessoa tem um tempo para lidar com todo o processo de perda – e aquelas abruptas tendem a demorar mais para serem superadas -, mas é importante analisar como o luto está afetando o dia a dia daquela pessoa. Se ela deixa de realizar tarefas necessárias, por mais doloroso que seja fazê-las em tal momento, se ela passa a perder o desejo de viver, se para de tomar banho, se alimentar bem, dormir direito… Se esse quadro durar muito tempo ou começar a afetar demais a qualidade de vida do enlutado, é preciso buscar ajuda médica, que geralmente é a de um psicólogo ou psiquiatra.

A psicanalista Kélida Marques ainda alerta para o fato de que pessoas que costumam ter dificuldade de falar sobre suas emoções, que são muito fechadas ou estão acostumadas a sofrer em silêncio requerem maior atenção. “Inteligência emocional e empatia são peças-chave para conseguir externar seus sentimentos da melhor forma, aumentando a nossa proteção espiritual e sendo consciente dos nossos pensamentos e atitudes”, explica. Ou seja, talvez seja preciso que o enlutado supere essa barreira com o apoio de um profissional da saúde para que finalmente consiga transformar toda a dor e todo o vazio em saudade e gratidão pelos momentos vividos.

Os rituais fúnebres no processo do luto

O ato de velar um corpo, conhecido como velório, pode variar de cultura para cultura, mas tende a ser visto com os mesmos olhos pela psicanálise, que acredita que esse processo ajuda o cérebro a processar tudo o que aconteceu. É muitas vezes durante esse ato que a ficha dos vivos cai e o processo de luto é oficialmente iniciado. “No que diz respeito ao(s) significado(s) presente(s) em rituais fúnebres, podemos considerar que incluem a demarcação de um estado de enlutamento, de reconhecimento da importância da perda e da importância daquele ente que foi perdido. Ritualizar é marcar, pontuar um aspecto da realidade ou um acontecimento. Neste contexto, os enlutados tendem a se encontrar em um estado de margem ou limiar, no qual entram mediante ritos de separação do morto e saem através de ritos de suspensão do luto e reintegração social(…) Os rituais relacionados com a morte, como os funerais, servem para contextualizar a experiência, permitindo as mudanças de papéis e a transição do ciclo de vida. Além do mais, podem oferecer à família o suporte da sensação de pertencer a uma cultura capaz de proporcionar respostas previsíveis num momento em que o choque da perda deixa-a entorpecida e desarticulada. Desta maneira, a universalidade das manifestações humanas diante da morte existe para atender às necessidades psicológica e social de dar um enquadramento e uma previsibilidade à perda pela morte”, escrevem Christiane Pantoja de Souza e Airle Miranda de Souza, pesquisadoras da Universidade Federal do Pará, no artigo Rituais Fúnebres no Processo do Luto: Significados e Funções, escrito em julho de 2019.

Para pesquisadores como Jean-Pierre Bayard, Maria Julia Kovács e Maria Helena Bromberg, os rituais fúnebres são importantes para os enlutados, por isso que a limitação ou privação deles em tempos de pandemia pode dificultar o processo do luto. Kovács pontua em seus estudos que muitos de nós morremos ao longo da vida, mas não é a morte física, aquela que mais assusta. Por exemplo, amar é morrer. “Uma pessoa focada no seu eu não ama, pois amar é transcender a si mesmo, é enfrentar algumas micromortes da vida cotidiana para se tornar livre, superar o medo e crescer. É a possibilidade de renovação, tal como ocorre na natureza”, expõe Eda Marconi Custódio, pesquisadora da USP-UMESP, no artigo Maria Julia Kovács: uma pesquisadora refletindo sobre a morte, escrito em 2013. Para Bromberg, além de o luto ser um processo vital, a morte assusta porque é colocada muitas vezes como castigo e também porque “nossa cultura não incorpora a morte como parte da vida”. Ou então a incorpora, mas de uma maneira banalizada, com as mortes se tornando cotidianas, especialmente as trágicas, não mais assustando ou matando a empatia daqueles que ainda estão vivos, mas morrem um pouquinho a cada dia e também matam, mesmo que indiretamente, dependendo do contexto e das ações.

Ilustração de uma mulher de longos cabelos azuis saindo de uma enorme gaiola vermelha; representação para a superação da depressão

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Como superar o luto

Mesmo que coletivo, todo luto tende a ser um processo individual, que pode ser minimizado por ações conjuntas, como os rituais fúnebres, missas e homenagens, e pela externalização dos sentimentos. A tristeza, o estresse, o choque, a ansiedade, a culpa, a raiva e o medo são alguns dos sintomas emocionais mais comuns do luto, que levam a sintomas físicos como insônia, falta de apetite, dores, infecções, etc. E não existe uma receita para superá-lo, justamente por se tratar de um processo individual, que varia de pessoa para pessoa, as existem algumas maneiras saudáveis de lidar com a perda, como pontua Rui Brandão, médico e Co-fundador do Zenklub, plataforma de saúde emocional e desenvolvimento pessoal: 

  • Dê tempo ao tempo e permita-se respeitar seus limites e seu “prazo” de luto;
  • Não brigue com seus sentimentos nem tente mascará-los. Aceite-os, mas não fique remoendo eles por um período muito longo de tempo;
  • Converse, conte com a ajuda das pessoas, não sinta medo de expressar aquilo que você está sentindo ou de ser julgado por isso;
  • Evite se isolar;
  • Passe tempo com as pessoas que você ama, como amigos e familiares;
  • Faça coisas que te deem prazer. Pode ser rever pela centésima vez seu filme conforto favorito ou encontrar um novo hobby. Canalizar emoções e ocupar a mente é essencial;
  • Exercite-se regularmente, coma bem e durma o suficiente para permanecer saudável e energizado.

O sentido da vida

Um dos maiores temores das pessoas é morrer sem ter realizado grandes feitos ou antes da hora, embora isso seja bastante subjetivo. Todo mundo deixa um legado, seja a pessoa anônima ou uma figura pública. Em momentos de crise e de luto, é natural que a gente passe a pensar mais na morte (mas ela nunca deve ser pensada como solução ou saída para nada) e nos propósitos da vida.

O monge budista Matthieu Ricard, de 74 anos, é considerado o ser humano mais feliz do mundo. O título foi dado por cientistas da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, que estudaram o cérebro do homem que diz que o propósito da vida é viver. Simples assim. Para Matthieu, nós humanos buscamos sempre algo e depositamos nesse algo todas nossas fichas da felicidade. Se não conseguimos, nos frustramos. Quando nos frustramos, passamos a questionar a vida e até uma Justiça Divina. Sonhos são aquilo que nos movem, mas sonhar e perseguir esses sonhos é diferente de buscar um sentido pra nossa existência, um propósito, uma superação constante. “Felicidade não é a busca infinita por uma série de experiências prazerosas. Isso é uma receita para a exaustão, isso não é felicidade. Felicidade é um jeito de ser, é um estado mental saudável que te dá os recursos para lidar com os altos e baixos da vida”, esclarece em entrevista à BBC.

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Para sofrer menos, o monge garante que o segredo para uma vida mais plena é simplesmente viver, e os momentos de contemplação, de quietude, são aqueles mais prazerosos e significativos! Então, para que o seu Epitáfio (frase colocada sobre o túmulo, lápide ou monumento funerário, geralmente para homenagear a pessoa que nele se encontra sepultada) não seja como o da música dos Titãs [que diz assim: “Devia ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o sol nascer. Devia ter arriscado mais, e até errado mais, ter feito o que eu queria fazer”], viva. E celebre a vida daqueles que fazem parte da sua, estejam ou não mais no plano terrestre. O luto é para ser vivido, mas você não pode viver do luto. 

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