Brasil é um dos campeões em casamento infantil. Quem são essas meninas?
Quem são essas meninas? Por que não falamos sobre isso? Será que todos os casos se enquadram em pedofilia?
A cada sete segundos, uma garota com menos de 15 anos se casa no mundo, de acordo com a ONG Save the Children. A estimativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) é de que pelo menos 7,5 milhões de meninas se casam todos os anos antes de atingirem os 18. Para algumas delas, o casamento acontece pouco tempo depois de completarem o décimo ano de vida.
Quando falamos sobre casamento infantil, as pessoas costumam se lembrar de países da África e do Oriente Médio, por exemplo, mas se esquecem de que o Brasil também ocupa uma posição alarmante na lista. Mais precisamente, o Brasil é o primeiro país no ranking de casamentos infantis da América Latina e está em quarto lugar no pódio mundial. Atualmente, a situação global é a seguinte:
1º lugar: Índia, com 26.610.000 casamentos até 18 anos;
2º lugar: Bangladesh, com 3.931.000 casamentos até 18 anos;
3º lugar: Nigéria, com 3.306.000 casamentos até 18 anos;
4º lugar: Brasil, com 2.928.000 casamentos até 18 anos.
Logo, é seguro dizer que a realidade do casamento infantil existe no Brasil. Aliás, ela provavelmente está presente no seu bairro. Isso acontece porque nem sempre os casamentos são realizados em cerimônia matrimonial na igreja ou com documentos oficiais no cartório. Na grande maioria dos casos, os jovens casais decidem morar juntos como se fossem casados. Ou seja, optam pela união estável. De acordo com a pesquisa “Ela vai no meu barco”, do Instituto Promundo, de 2015, muitas meninas entram em uniões informais e deixam a casa dos pais por acreditarem que, assim, terão mais liberdade.
As leis brasileiras que regem o casamento de menores de idade são o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente. De acordo com elas, o menor de 18 anos precisa ter autorização de ambos os pais ou judicial e ser maior de 16 anos para se casar legalmente. Nesses casos, o casamento implica na emancipação do jovem com idade entre 16 e 18, que passa a ter os mesmos direitos e deveres dos adultos. Ana Paula Braga e Marina Ruzzi, do escritório Braga & Ruzzi, esclarecem que as uniões informais não incluem menores de idade nas leis do Brasil. “Atualmente, a união estável é equiparada ao casamento para fins jurídicos, ainda que não registrada em cartório. Contudo, não foi feita uma regulamentação no que tange aos menores de 18 anos, o que gera certa divergência de opiniões”, as advogadas explicam.
Nos casos em que a menina é menor e o homem é maior de 18, não existe uma punição específica para o casamento, mas o artigo 217-A do Código Penal determina que qualquer relação sexual com menor de 14 anos é considerada estupro de vulnerável, mesmo que haja consentimento.
N.B. tinha apenas 13 anos quando decidiu morar com o namorado, mas a união estável foi um ato desesperado para que ela fugisse de um problema maior. “Estava sofrendo tentativas de abuso do meu padrasto. Contei para o meu namorado, mas meu padrasto encontrou as mensagens e me espancou. No outro dia, meu namorado viu as marcas e, na mesma hora, falou que era para eu juntar minhas coisas e ir morar com ele“, conta. O abuso acontecia há quatro anos. A garota chegou a relatar a situação para a mãe, que fez um boletim de ocorrência por insistência dos vizinhos, mas não seguiu com a queixa. “No dia seguinte, coloquei as coisas na mochila e falei que ia para a escola, mas fui pra casa do meu namorado“, lembra. A família do rapaz apoiou a decisão.
Aos 13 anos, N.B. acabou abandonando a escola, mas se arrependeu logo depois. Tentou retornar aos 15, com uma prova do estado que elimina matérias e disponibiliza o diploma. Hoje, aos 21 anos, ela mora com o marido e a filha, que teve aos 18. “As pessoas falam que eu casei por ‘fogo’, mas não sabem da história. O casamento me salvou de um estupro“, diz.
De acordo com a assistente social e diretora do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), Daniela Möller, o casamento na adolescência é, muitas vezes, visto como uma solução de problemas. “Há uma falsa expectativa das famílias em situação de pobreza de que, ao casar, as dificuldades de vida e sobrevivência da menina sejam resolvidas”, explica.
Segundo ela, os principais motivos que levam ao casamento antes dos 18 anos são conflitos familiares e situações de violência doméstica. “Muitas meninas que fogem de casa para viver longe de violência e dos casos de conflitos acabam sofrendo a mesma situação na casa do marido”, Daniela complementa. Felizmente, não foi o que aconteceu com a N.B., mas ainda é a realidade de muitas adolescentes que passam pela mesma situação.
Segundo o Banco Mundial, são cerca de 554 mil casamentos de meninas entre 10 a 17 anos por ano no Brasil, sendo mais de 65 mil delas com idades entre 10 e 14 anos. Essa realidade corresponde a 30% da evasão escolar feminina no ensino secundário ao redor do mundo. “A baixa escolaridade por sua vez atinge as possibilidades que as mulheres têm para conseguir emprego. Quando conseguem um, são em atividades sem proteção trabalhista e com rendimentos muito baixos”, Daniela explica. Além disso, as meninas que se casam antes dos 18 têm mais probabilidade de engravidar cedo.
Diferentemente da N.B., a Isabela Chrystina planejou se casar aos 16 anos. Apesar de serem brasileiros, ela e o namorado já moravam nos Estados Unidos quando se conheceram e sempre quiseram realizar o matrimônio. “Meu esposo e eu amadurecemos muito rápido e, desde o princípio de nosso relacionamento, queríamos selar perante Deus um voto de fidelidade”, conta. Além da mãe demorar para entender que a filha estava pronta, a própria Isabela se preocupava com os comentários negativos que as pessoas fariam. “Eu ficava triste e, às vezes, escondia sobre meu casamento, mas foi uma fase muito rápida na minha vida. Eu estou feliz hoje e certos comentários não me afetam mais”, diz.
Ainda que alguns casamentos na adolescência aconteçam por vontade própria, é importante considerar que a grande maioria não tem escolha. Todos esses dados mostram que um alarmante número de meninas “são jogadas” em um casamento precoce para resolver problemas ou tentar uma vida melhor, mas acabam perdendo a essência da adolescência e tendo a infância roubada.
“Falta fiscalização para avaliar a situação legal e segurança das meninas, de modo que as regras previstas pelo Código Civil e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente acabam não sendo aplicadas na prática“, as advogadas reforçam. Além disso, a população deve ter conscientização de que um casamento antes dos 15 anos pode afetar negativamente a vida da garota no presente e no futuro. No Brasil, essas meninas estão presentes principalmente em áreas rurais do Norte e do Nordeste, mas podem ser encontradas em todo país. Não somos apenas nós que precisamos prestar mais atenção nelas, mas a Justiça também. A falta de leis que garantam a proteção dessas garotas menores de idade é notável.