Sim, a nossa galera ainda está fazendo muito pelo Litoral Norte
Um grupo de jovens se reuniu para montar o projeto VOA, com o objetivo de colaborar com a comunidade local, devastada pelas chuvas e enchentes.
o começo deste ano, vimos o Litoral Norte do estado de São Paulo ficar, literalmente, debaixo d’água. Vamos combinar que catástrofes como essa não são nenhuma novidade – elas estão mais para despreparo e negligência governamental – e vão se tornar cada vez mais comuns como um reflexo da crise climática.
Porém, não queremos ser um cavaleiro do apocalipse, nós temos um fiapinho de esperança: o Projeto VOA (Vibre Ondas de Amor) foi criado por uma galera muito legal, e contou com a ajuda de muita gente jovem para prestar socorro para as vítimas das enchentes.
“O projeto surgiu a partir de uma conversa informal entre amigos e família durante o primeiro lockdown da pandemia de covid-19”, explica Kalina Juzwiak, artista e voluntária VOA. “Estávamos isolados em nossas casas, em Juquehy, ainda incertos do que viria pela frente. Mas logo enxergamos e reconhecemos o impacto financeiro que a pandemia teria na comunidade local.”
Para quem não sabe, o turismo é um dos maiores impulsionadores da economia e dos empregos daquela região – só para você ter uma ideia, as prefeituras locais esperavam em torno de dois milhões de turistas para o Ano Novo de 2023 – e tudo isso foi cortado durante os períodos de quarentena.
Com isso em mente, Kalina, de 36 anos, e Sofie Wolthers, de 28, uniram “cabeças e corações” com um grupo de pessoas que visitam as praias locais com frequência ou que possuíam casas na região – foi assim que surgiu a VOA.
Com a ajuda de campanhas de financiamento coletivo, o projeto começou a ganhar asas e visibilidade, afinal, Kalina e Sofie, ambas artistas, usaram a sua rede de contato para conseguirem que mais artistas e fotógrafos se unissem a rede sem nem hesitar. Todo o valor arrecado foi convertido em cestas básicas, entregue para famílias locais em um mutirão de voluntários da rede.
Quer entender melhor sobre o projeto e o seu papel na tragédia do Litoral Norte? Olha só o nosso bate-papo com as duas:
CAPRICHO: Como tem funcionado o trabalho de vocês?
Kalina: Chuvas fortes não são novidade aqui pelo litoral de São Paulo. Mas o que vivemos na última noite entre dia 18 e 19 de fevereiro foi de longe a expressão mais intensa da força da natureza que já passou por aqui. Uma noite e uma madrugada inteira de chuva ininterrupta e devastadora. Os rios transbordaram, morros deslizaram e como resultado, centenas de famílias perderam tudo.
Além das doações em mantimentos e vestuário, também rodamos a nossa plataforma de doações em dinheiro, já visando o desenvolvimento posterior do nosso lar também a longo prazo
No dia seguinte das chuvas, instintivamente nos conectamos, e colocamos uma nova campanha no ar. E retomamos nossa atividade, unindo novamente amigos, família, locais, surfistas, artistas e barqueiros. Nossa rede foi a primeira a chegar nos locais mais afetados, pois simplesmente saímos pelas nossas portas, avaliamos as nossas situações, nos mobilizando inclusive no salvamento das vítimas em meio aos escombros, abrindo as portas para receber, alojar e abrigar vítimas. Com mãos e corações nos entregamos ao movimento. E assim seguimos intensamente, e incansavelmente ao resgate e apoio à nossa família local. Comprando e distribuindo alimentos, arrecadando doações, criando centros de coleta e distribuição, encontrando pontos para abrigos e creches, acionando redes de voluntários, médicos, cozinheiros, restaurantes, escolas e mais. Aos poucos também nos conectamos a outros movimentos, associações e instituições.
Além das doações em mantimentos e vestuário, também rodamos a nossa plataforma de doações em dinheiro, já visando o desenvolvimento posterior do nosso lar também a longo prazo. Muito cedo identificamos que o movimento das mídias também movimenta a solidariedade do nosso povo, que se mobilizaram para as doações. Mas, quem ficaria, a hora que a chama se apagasse? Somos muitos. Essa é a nossa casa, e nós surgimos para ficar. Cuidar e regenerar esse nosso lar, do mar.
Para isso, estamos em um momento de constituir uma Associação, criamos núcleos, denominamos líderes, membros, concelhos e criamos uma rede, conectada de voluntários trabalhando por um mesmo propósito. Criamos sistemas para de escuta e acolhimento, e estamos nos reestruturando para trabalhar em metas de curto, médio e longo prazo. Ainda temos muito trabalho pela frente.
Em um primeiro momento, a assistência era emergência – e até sobrevivência. Aos poucos as peças vão se encaixando, e nós nos posicionando, ainda como um grande guarda-chuva com várias conexões e alianças, que optem por caminhar na mesma direção. Estamos de olhos abertos e atentos a todos os movimentos, também do poder público, mas não acreditamos no retrabalho ou mesmo no trabalho redundante, então optamos olhar para o que não será cuidado neste momento. A comunidade e a cultura. O cuidado e o desenvolvimento. Do ambiente e da economia local. Também conectando o eixo – cidade e mar – e valorizando ainda mais este nosso lar.
E o que vocês esperam alcançar com esse projeto?
Sofie: A gente espera poder assistir às famílias que a gente ajudou e que fazem parte do projeto, que a gente conhece faz tempo e foram pegas de surpresa, vítimas dessa enchente. Ninguém sabe o que vai acontecer, porque é uma grande tragédia e todo dia a gente está vendo que as necessidades são diferentes, e o projeto vai se assimilando às ondas que estão mudando.
Eu espero poder ajudar essas famílias em todas as mudanças das fases, de poder ajudar a reconstruir essa comunidade de Juquehy, e ajudar realmente através de cultura. Somos vários artistas, e a gente acredita também que, em momentos difíceis, a cultura e a arte podem realmente ajudar a construir uma comunidade, seja com aula de surfe, de música, eventos pontuais ou eventos culturais para poder arrecadar dinheiro para comprar mantimentos e cestas básicas.
Como tem sido o trabalho no Litoral Norte?
Kalina: Em um primeiro momento foi de pura sobrevivência. Trabalhamos no assistencialismo emergencial, numa grande rede que se formou quase de forma natural. Amigos, conhecidos, fomos nos conectando. E mesmo isolados, usando grupos no WhatsApp conseguimos atender muitas famílias, através de doações. Criamos centros de coleta e distribuição, ajudamos na organização de abrigos e mobilizações. Ao mesmo tempo, na retaguarda do VOA, fomos construindo times de comunicação e construção de alianças. Sempre tendo essa visão do todo, e articulando as partes.
Neste momento, temos muitos movimentos acontecendo no sentido de assistência. Às famílias, e à reconstrução, envolvendo outras instituições, mas também as bases governamentais. Nós estamos aos poucos nos conectando a projetos que visam o desenvolvimento local a longo prazo. Estamos numa fase de transição, ainda dando assistência às famílias, mas também direcionando o projeto para o lado socio-cultural e ambiental. Estamos constituindo uma base, junto a associações locais, na praia de Juquehy, de onde surgimos. E aos poucos também movimentando projetos pontuais e eventos, de desenvolvimento cultural e ambiental. Ainda temos muito trabalho pela frente, mas estamos animados com as oportunidades que se abrem.
Não resolvemos problemas usando o mesmo mindset a partir de como o problema surgiu, e sim mudando de perspectiva, e agindo de forma diferente
Qual tem sido a maior dificuldade de vocês, nesse momento?
Sofie: A maior dificuldade é a organização. São várias pessoas fazendo várias coisas e todo mundo quer abraçar tudo – tem muito trabalho sendo refeito. O que a gente está buscando agora é essa organização, cadastramento, para ver qual ONG está fazendo o quê, e como a gente pode juntar as mãos para que não tenha esse retrabalho.
Nesse momento, a gente está finalmente chegando em um lugar bem bacana com isso, unindo com associações locais de Juquehy e do Litoral Norte, para cada um fazer o seu trabalho e tudo ficar com o mesmo objetivo: reconstruir e ajudar o nosso Litoral Norte. É reconstruir a comunidade.
O que vocês acham que precisa acontecer para que desastres como esse não rolem mais?
Kalina: Desastres naturais acontecem no mundo todo. O tempo todo, e talvez cada vez mais. O nosso planeta está sofrendo, e temos responsabilidade nisso. Ao mesmo tempo, podemos apontar o dedo para diversas problemáticas sociais e econômicas, ou mesmo governamentais. Falta de olhar, visão e cuidado com o local. Que podem, sim, talvez agora, ser remediados. Ou mesmo repensados antes de uma reconstrução. Temos preocupações nesse sentido. Mas escolhemos não gastar energia em apontar dedos, e sim nos tornarmos ativistas da (auto)responsabilidade. Da consciência. Do reverberar. Do conscientizar. Do educar. Do dar e movimentar, cada um com os seus super poderes, na mesma direção.
O problema não é pontual, e sim sistêmico. Então, a pergunta é, dentro do que está no nosso alcance, como podemos nos tornar agentes de mudança, ou de impacto positivo? Como podemos somar e multiplicar. Com outras pessoas, com outras lideranças, com a voz. Com a arte. Com o corpo. Com a expressão. Quando cada um dá o melhor de si, juntos somos mais fortes. Parando de pensar individualmente, e sim coletivamente, em uma visão regenerativa.
Não resolvemos problemas usando o mesmo mindset a partir de como o problema surgiu, e sim mudando de perspectiva, e agindo de forma diferente. Como dizia George Bernard Shaw: “As pessoas sempre põem culpa nas circunstâncias por serem quem são. Não acredito em circunstância. Os indivíduos de sucesso são aqueles que saem e procuram as condições que desejam. E se não as encontram, criam-nas.” E se levarmos este pensamento para o coletivo?