Minha experiência no terreiro de Umbanda só me trouxe acolhimento

Não posso deixar de me sentir esperançosa ao ver um semelhante com uma guia no pescoço

Por Janaina Bernardino, especial para a CAPRICHO Atualizado em 29 out 2024, 18h59 - Publicado em 7 fev 2023, 06h00
Religião CH
“Aprendi que todo esse ritual nada mais é do que perpetuar o contato com os nossos: é ancestralidade!”, escreve colunista da CH Getty Images/Getty Images

Alguns de nós carregam lembranças afetivas de sentir acolhimento, sabedoria e paz em alguns espaços durante a infância. Aos 5 anos de idade, eu pouco sabia sobre este espaço, só que ele me trazia a sensação de “estar em casa”. Hoje, já adulta, revisito as mesmas emoções toda vez que entro em espaços semelhantes o que dá legitimidade àquelas sensações de antes.

Vez ou outra, minha mãe me conta que, quando era criança, compartilhava dos mesmos sentimentos. Diferente de mim, o espaço religioso foi muito mais presente em sua vida. Esse lugar é o centro da Madrinha Tunica, referência de festa de Cosme e Damião aqui na periferia de São Paulo. Toda vez que minha mãe conta histórias ela ri, emociona, se diverte e lembra o elo que que tinha com minha avó, em um cultivo de sua ancestralidade e afeto. E ah, inclusive, Dona Lourdes – minha avó – tinha uma clareza espiritual admirável. Ela honrava os seus Orixás, mas nunca deixou de respeitar outras religiões, crenças.

Apesar de muitas pessoas como eu terem experiências desse tipo, essa não é a principal visão que outras têm desses espaços, os chamados terreiros, centros de Umbanda ou Candomblé e até mesmo “Barracão”. Mas ouso dizer que são percepções baseadas a partir de um processo que tem uma conexão com uma visão preconceituosa, em que tudo aquilo que se conecta com o corpo e a cultura negra passa a ser lido como algo desumano, demonizado, inferior, ruim. 

Um dos maiores exemplos é a figura de Exú, visto como um “demônio”. Mesmo que a própria religião não cultue esse tipo de crença, tal associação é feita historicamente. Exú é o Orixá mais próximo do mundo terreno, está nessa ambiguidade entre o divino e o humano. É fiel, justo e age pelo correto, mas também é responsável por “abrir os caminhos”, ou seja, é quem traz a bonança, a fartura e a prosperidade para o nosso lar. 

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Em 2022, a Grande Rio, escola de samba carioca, trouxe a entidade como tema em seu enredo batizado de “Fala, Majeté! Sete Chaves de Exú”. No desfile, a figura do Orixá aparece com a intenção de desmistificar as características e estereótipos negativos. E o samba é isso: uma ferramenta social para denunciar o preconceito, o racismo religioso e a intolerância. 

E apesar de todo esse esforço, as religiões de matrizes africanas passam por uma lógica de extermínio, assim como a subjetividade da negritude. Logo, relacionar as cantigas, adereços, rituais e as divindades cultuadas como algo que foge do correto, é uma das formas de invisibilizar e apagar nossa cultura. Aqueles que acreditam que os terreiros são negativos e violentos estão super equivocados e reforçando um lugar social muito perigoso de reforço à diferença, viu?

Já vimos notícias de casas de Umbanda e Candomblé sendo incendiadas, imagens de entidades vandalizadas e até casos em que uma mãe é afastada da filha levar a criança no Candomblé. Tudo isso tem nome: intolerância religiosa. E eu não pude deixar de escrever sobre um tema tão importante e que diz sobre a minha vivência nesses espaços e também de outros jovens negros que encontram nele amparo emocional, mental e espiritual.  

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Datas sazonais, como o Dia da Intolerância Religiosa – comemorado em 21 de janeiro – pouco importam se não há um plano de ação, se não temos políticas públicas de combate à esse tipo de violência. Mas não posso deixar de me sentir esperançosa ao ver um semelhante com uma guia no pescoço, por exemplo. Ali eu vejo o sentido de continuidade dos nossos corpos, de nossa cultura. É isso que tentamos ser, quando não somos alvo de algo que nos fere.

Vestida de branco, com os pés descalços, rodeada de uma energia que me abraça e acolhe, me sinto confortável para mostrar as minhas fragilidades enquanto eu tenho uma conversa com um Preto Velho, uma das entidades que representam a generosidade, amor e humildade. Características, que, inclusive, sempre vi em minha avó e que tenho levado comigo.

E todo esse ritual nada mais é do que perpetuar o contato com os nossos: é ancestralidade!

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