Mari Ferrer não tem mais tempo a perder: é hora de voltar a viver
A jovem falou em público pela primeira vez após o crime de 2018, que fez sua vida parar, e hoje é motivo de luta e resistência

ari Ferrer falou em público pela primeira vez após sete anos do crime que acometeu sua juventude e deixou feridas emocionais e psicológicas profundas. Durante um evento realizado na Embaixada Britânica em Brasília, na última quarta-feira (28), a estudante de Direito fez um discurso forte e potente sobre a decisão de recomeçar a sua vida depois do que aconteceu em 2018 e fazer da dor um combustível para a busca por conhecimento e justiça.
“Fiquei quase sete anos trancafiada em casa por decorrência do estupro e das demais violações que sofri desde então. Fui diagnosticada com diversos traumas e sequelas, como síndrome do pânico, estresse pós-traumático, depressão, fobia social e ansiedade generalizada”, relatou durante o lançamento de uma Nota Técnica promovida pelo Observatório GiCS (Gênero, Interseccionalidade e Cidades Seguras), com apoio do Governo Britânico no Brasil.
Apesar de ainda casar gatilhos e dor, Mariana não deixou de relembrar o que aconteceu no dia 15 de dezembro de 2018, no Café de La Musique. Com então 21 anos, ela trabalhava como modelo e influenciadora digital e era embaixadora desse beach club de luxo em Florianópolis. Um dia após um evento que aconteceu no local, ela registrou um boletim de ocorrência relatando ter sido drogada e estuprada.
Mas o pesadelo não parou por aí. O caso teve repercussão nacional à época pela maneira como a jovem foi tratada em audiência sobre o estupro que denunciou à Justiça. Em vídeo divulgado pela imprensa, ela é humilhada e tem sua reputação questionada pelo advogado de defesa do réu. Seu caso inspirou a “Lei Mariana Ferrer”, aprovada pelo Congresso Nacional, que proíbe que vítimas e testemunhas de crimes sexuais sejam humilhadas ou constrangidas durante o processo.
Depois dos episódios traumáticos, Mari saiu das redes sociais, ficou reclusa em casa, enfrentando problemas psicológicos, que a impossibilitaram de levar uma vida plena e de aproveitar momentos felizes e importantes da sua vida, como contou em sua fala no evento que a CAPRICHO acompanhou de forma remota. A jovem, hoje com 27 anos e estudante de Direito, diz que o falecimento da mãe de uma grande amiga, no final de 2024, lhe fez repensar sobre sua vida e encorajar a recomeçar.
“Eu me toquei que a minha vida estava passando de verdade, que as pessoas não são eternas e que eu não consigo pedir reembolso dos momentos que fiquei estancada na cama. Percebi que o pior sentimento que podemos ter é o arrependimento de não ter feito, falado e vivido antes com quem amamos”, conta.
Eu estava deixando passar tempos preciosos ao lado de todos que me amam e me querem bem, por medo. Isso sim é a minha maior derrota que os criminosos poderiam comemorar.
Mari Ferrer
Seguir em frente, apesar de necessário, é bem desafiador, segundo Mariana. “Aprender a viver depois que você sofre violência sexual é torturante, até que você consiga se defender da sua ‘eu’ vítima e tome frente como pessoa novamente”, diz. Ela conta ainda que “a felicidade, muitas vezes, é sentida como punição”, como se uma voz dissesse que ela não deveria estar se sentindo feliz depois de tudo que aconteceu.
Controlar o medo e ansiedade toda vez que um gatilho a faz relembrar da violência sexual que sofreu é outro exercício diário para a jovem. “Eu tenho treinado meu cérebro para entender que eu não sou um fator de perigo o tempo todo. Eu eu faço o compromisso, eu os cumpro como maestria, independente se por dentro eu quero desistir, deitar no chão e chorar. Na verdade, eu não tenho mais tempo para isso porque eu preciso viver.“
Eu disse a mim mesma que a partir de 2025 seria diferente. Eu retomaria a minha vida por completo, ou melhor, eu construiria uma outra, muito melhor do que já foi, por mais difícil que pudesse ser esse processo.
Na primeira fala em público depois de tanto tempo, Mari agradeceu à mãe, que “abdicou sua vida para cuidar dela”, os seus professores que lhe dão força diariamente, e todos que tem colaborado para que ela siga em frente como “mulher, sobrevivente, estudante de direito e futura jurídica”.
Ela diz que tem um exército que luta com ela, composto por pessoas que se compadecem com sua história e usem seus cargos em favor de justiça no seu caso e, consequentemente de todas as vítimas de violência que, assim como ela, “nunca tinham sido devidamente enxergadas”.
“Se posso dar um conselho a todas das minhas irmãs, irmãos, de alma e luta é: escutem. O conhecimento é a única ferramenta que ninguém pode tirar de vocês. Jamais. Agradeço a todas que vieram antes de mim, principalmente as vítimas que não estão mais aqui fisicamente. Eu seguirei ainda mais firme fazendo ecoar todas as vozes que foram abafadas”, defendeu.
“Essa é a primeira vez que falo em público depois de quase sete anos [do crime]. É a primeira de muitas. Eu finalmente arranquei a venda dos meus olhos”, finalizou sua fala.