Esta embaixadora trabalha para um futuro com mais mulheres no Itamaraty
Conversamos com Irene Vida Gala sobre carreira, desafios e demandas das diplomatas na busca por igualdade de gênero no Ministério das Relações Exteriores
aior representatividade feminina na política é uma demanda crucial para a nossa democracia, certo? Mas sabemos que isso não acontece como deveria ser na prática. Apesar de muitos desafios no meio do caminho, como a PEC da Anistia que quer “perdoar” partidos que não cumpriram cotas de gênero e raça, mulheres seguem defendendo seus direitos e lutando juntas por espaço – dentro e fora do país.
Exemplo disso é a Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras, criada oficialmente em janeiro deste ano, para batalhar para que o Ministério das Relações Exteriores seja mais plural. “Nosso objetivo é mostrar para as mulheres que juntas temos mais força e que vamos conseguir mudar a agenda”, afirma a embaixadora Irene Vida Gala, uma das principais vozes na luta por mais espaço para mulheres na pasta.
Ela conversou com a CAPRICHO e compartilhou que, na sua visão alguns dos pequenos avanços que já rolaram são frutos de muita luta, mas que ainda há muito que avançar. “Somos formadas da mesma forma que os nossos colegas, passamos pelas mesmos desafios e concursos. E muitos deles que são apresentados a esses cargos têm menos tempo de carreira que nós, mulheres”, complementa.
Também conhecido como Itamaraty, o Ministério é o órgão do Poder Executivo responsável por representar o Brasil perante outros países e organizações internacionais, formular políticas junto à eles, promover o comércio exterior, prestar assistência a brasileiros que moram em outros países, além de também divulgar a cultura e os valores do nosso povo. Deu para perceber a importância, né?
O que eu digo para vocês, garotas: arregacem as mangas e vamos pensar politicamente e participar da vida do nosso país!
Irene Vida Gala
E muitas mulheres diplomatas têm contribuído brilhantemente nessas tarefas, mas isso não blinda essas profissionais dos efeitos da desigualdade de gênero presente no Ministério. Elas integram apenas 23% dos postos diplomáticos, segundo o levantamento da Associação. Outro dado importante para entender a disparidade é que o Brasil nunca teve uma mulher na chanceler (quem preside o Ministério das Relações Exteriores). Apesar da expectativa para a indicação de Lula bem no começo do mandato, o escolhido para comandar o Itamaraty mais uma vez foi um homem, o ministro Mauro Vieira.
Em contrapartida, a embaixadora Maria Laura Rocha foi anunciada como secretária-geral (o segundo cargo mais importante), tornando-se a primeira mulher a alcançar a posição na história. Neste ano também, a ministra da carreira diplomática Vanessa Dolce de Faria também foi indicada como Alta Representante para Temas de Gênero na pasta das Relações Exteriores.
Formada em Direito pela USP, Irene ingressou no Instituto Rio Branco em 1985 e toma posse na carreira diplomática em dezembro de 1986.
Ao longo da sua trajetória, especializou-se na relação do Brasil com o continente africano, fazendo parte de dezenas de missões em lugares como Luanda, Quênia, Sudão, República Democrática do Congo, São Tomé e Príncipe, Gabão, Libéria, Serra Leoa, Côte d’Ivoire e Etiópia. Entre 2004 e 2005, acompanhou temas africanos no Conselho de Segurança da ONU, em Nova York. Já em Roma, foi Cônsul-Geral Adjunta. E em Acra, ocupou a chefia da Embaixada do Brasil.
Atualmente ela é subchefe do Escritório de Representação do Itamaraty em São Paulo e também tem uma missão importante à frente da Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras.
Durante o nosso papo com a embaixadora, que ocorreu nas vésperas de uma viagem dela à Brasília para conversar com deputados e senadores representando todas suas colegas diplomatas, ela também falou sobre carreira, diplomacia, política e, no fim, deixou um recado importante para a nossa galera.
“A condição das mulheres em alguns lugares do mundo é muito grave. No Irã, por exemplo, meninas lutam para ter acesso à educação. Então, cada vez mais o tema de gênero vai ganhando relevância no sistema internacional.”
Leia a entrevista completa abaixo:
CAPRICHO: Embaixadora Irene, me conta um pouco da sua trajetória. Como se deu o seu envolvimento com o continente africano e com questões de raça?
Irene Vida Gala: Quando cheguei no Itamaraty, já tinha a percepção de que era uma carreira muito concorrida. Então, comecei a pensar no que poderia fazer para ser diferente. E aí eu descobri a África, uma área que ainda era quase nada explorada, e passei a trabalhar com isso. Eu sempre digo quando dou palestras, especialmente para universitários: se você quer ter chance, nunca pegue o caminho mais concorrido. Ele pode até aparecer mais fácil, mas vai chegar uma hora que vai dar um congestionamento. No meu caso, escolher trabalhar com o continente africano, quando ninguém fazia isso, me deu visibilidade e também me blindou um pouco contra a dificuldade associada à questão de gênero na carreira.
Sobre a questão racial, antes de entrar na carreira diplomática, a dura realidade do racismo não estava presente no meu dia a dia. Eu era filha de imigrantes de classe média, sem nenhum acesso às estruturas clássicas do poder brasileiro. Não tinha aquela história de ter empregado, “Casa Grande e Senzala”. E uma coisa é ler sobre o tema, outra é vivenciar. Mas quando eu comecei a trabalhar com África passou a ser inevitável me deparar com as questões do racismo no Brasil. Já na parte final da minha carreira, precisei escrever uma tese para concorrer a promoção e escolhi abordar, justamente, a relação do Brasil com a África e a questão do racismo – que depois virou um livro chamado Política Externa como Ação Afirmativa*.
A senhora disse que trabalhar com África te blindou de dificuldades que as mulheres, normalmente, sofrem na carreira diplomática. Por quê?
Eu cheguei a embaixadora relativamente cedo. Numa turma de 44 pessoas, apenas dez mulheres, eu fui a quinta a chegar no cargo mais alto. Costumo dizer que até alcançar o topo da carreira o fato de ser mulher não me atrapalhou, porque fui conduzindo o meu percurso muito tematicamente, sem concorrência. Mas, quando cheguei lá, todos estavam na mesma seara, disputando o mesmo espaço. Aí sim senti as dificuldades relacionadas ao gênero. Não só eu, como todas as minhas colegas nessas posições mais elevadas.
O pessoal está mais acostumado com a carreira militar, né? Embaixador equivale ao general quatro estrelas, para ficar mais fácil de entender. Estamos no mais alto nível, mas ainda assim, não conseguimos espaços de poder e visibilidade que certamente merecemos.
Em relação a essa questão de gênero, quais são as expectativas das ações do governo que começou neste ano?
Todo início de governo, há uma mudança estratégica de postos de embaixadores nos principais postos da carreira diplomática. É feita uma lista de nomes que segue para o Congresso aprovar. E a primeira lista que foi enviada pelo atual ministro [das Relações Exteriores], Mauro Vieira, é composta por 23 nomes: 22 homens e uma única mulher. É uma vergonha, né?
O Itamaraty tem ficado fora da curva do governo Lula, que tem uma proposta e um compromisso com a questão das mulheres. Consideramos isso quase como um ataque. Somos formadas da mesma forma que os nossos colegas, passamos pelas mesmos desafios e concursos. E muitos deles que são apresentados a esses cargos têm menos tempo de carreira que nós, mulheres.
Quando o presidente Lula ainda estava em campanha, conversamos e ele até gostou da ideia de ter uma mulher ministra das Relações Exteriores. Isso ia sinalizar para o mundo que depois de quatro anos de um governo super conservador, o Brasil tem uma proposta inovadora. Infelizmente, o lobby masculino não deixou isso acontecer. Cada vez que uma mulher entra, um homem sai e eles não vão querer sair facilmente. Nosso avanços são fruto de muita luta. Mas a gente conseguiu fazer a número dois do Itamaraty.
A falta de representatividade feminina é um problema no Itamaraty, mas também na política brasileira em geral. Estamos vendo a questão do STF e a pressão para indicar uma mulher, por exemplo. Como a senhora vê isso?
Existem carreiras públicas onde há mais mulheres do que homens, mas elas não estão em maior número nas instâncias de poder. Ou seja, elas podem estar na base, mas quando falamos de cargos de chefia, elas não estão. Então, a luta das mulheres por visibilidade e poder está em todos os ministérios. Está presente no Ministério Público, no Judiciário, no Legislativo. Nunca teve uma mulher na mesa diretora do Senado, por exemplo.
Quando falamos para jovens, como estou fazendo agora, muitos têm a consciência da agenda de mulher, mas nem sempre estão envolvidos no espaço da política. Acho que a coisa mais importante a dizer a eles é: vote em mulher! Mulher vota em mulher, mulher vota em mulher e repito várias vezes. Há mulheres em todos os espectros políticos, no centro, na esquerda, na ala progressiva, na conservadora. O importante é votar em mulher, porque isso é essencial para mudar o quadro político.
Quais são as principais propostas da Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras, da qual a senhora preside?
Antes, a Associação existia como uma plataforma de diálogo informal, uma rede de mulheres diplomatas. Em janeiro deste ano, resolvemos criar um CNPJ, endereço e personalidade jurídica. Nosso objetivo é mostrar para as mulheres que juntas temos mais força e que vamos conseguir mudar a agenda – não duvidamos disso.
Os postos mais importantes estão sendo entregues aos homens e nós queríamos, no mínimo, 30% deles para as mulheres. Nós, mulheres, somos 23% da carreira hoje, mas quando você faz uma ação afirmativa você tem que ir além do número da proporcionalidade – para superar esse padrão. Nós queremos uma participação maior e garantida de mulheres, o que você pode chamar de cotas, por exemplo.
E a nossa Associação busca trazer a pauta da mulher, pensando na diversidade. Porque nós não temos tantas mulheres, mas temos menos ainda negras, indígenas e mulheres com deficiência.
Como é essa discussão fora do Brasil? O que as diplomatas de outros países têm trazido de legal também?
A condição das mulheres em alguns lugares do mundo é muito grave. No Irã, por exemplo, meninas lutam para ter acesso à educação. Então, cada vez mais o tema de gênero vai ganhando relevância no sistema internacional. Alguns países, inclusive, já implementaram o que chamamos de uma política externa feminista. Trata-se da ideia de que a questão de gênero deve permear toda agenda internacional. Mulher entra na área de segurança, de desenvolvimento, de paz, de cooperação, de cultura, de ciência e tecnologia. Em todos os temas mesmo.
Para nós, mulheres brasileiras, é muito importante conversar com diplomatas de outros países, que também têm suas associações e que conseguiram avanços que nós ainda não alcançamos.
O que a senhora diria para as jovens que sonham em ingressar no Itamaraty?
Olha, eu adoro minha carreira, sou totalmente realizada do ponto de vista profissional. Ser diplomata me permitiu crescer, conhecer o mundo, alargar meus horizontes. Me permitiu trabalhar com gente de vários lugares do mundo, de diferentes extratos sociais. Você conversa com o rei e rainha, mas também com pessoas em condições muito difíceis, como quando eu morei em Angola durante a guerra.
Enfim, a minha carreira me permitiu sair da minha posição de conforto de brasileira vivendo no Brasil e ser submetida a vários desafios – e eu acho que eu venci eles, né? Então, meu recado para as meninas é: qualquer garota que não esteja feliz ou que acha que pode melhorar alguma coisa na nossa realidade tem o papel de mudança coletiva. Essa jovem tem que entender que ela tem poder e potência. Todos nós, seres humanos, temos.
Está na mão de cada uma de nós. Eu já sou bem velhinha, cabe para as mais novas que eu e, sobretudo, para as muito mais novas. O que eu digo para vocês, garotas: arregacem as mangas e vamos pensar politicamente e participar da vida do nosso país!
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