‘K-drama date’ é alerta sobre fetichização e desrespeito cultural

Plataforma que promove encontros amorosos com “oppas” está sendo investigada e gera debate entre os fãs

Por Gustavo Balducci Atualizado em 10 nov 2025, 17h35 - Publicado em 9 nov 2025, 15h00

É fato que a popularização do k-pop e dos k-dramas transformou a Coreia do Sul em um dos lugares mais influentes da cultura pop. Mas não só isso. Sua moda e até mesmo os padrões de beleza atravessaram fronteiras, conquistaram milhões de fãs e ajudaram a reposicionar a imagem da Ásia na mídia. Junto com toda essa onda de visibilidade, no entanto, veio também um assunto delicado: até que ponto essa admiração pela aparência coreana é saudável e quando ela se transforma em fetichização?

Fetichização nada mais é do que o ato de reduzir uma pessoa a um conjunto de características, a transformando em objeto de desejo, curiosidade ou consumo. No caso de pessoas asiáticas, em específico as do leste e sudeste do continente, isso significa serem vistas através de uma lente que mistura estereótipos coloniais, raciais e sexuais.

Também vale lembrar que, historicamente, corpos amarelos foram retratados por aqui no Ocidente como enigmáticos, submissos ou hipersexualizados. As mulheres, frequentemente descritas como delicadas e obedientes, enquanto os homens, como andrógenos ou asexuados. Essa visão, herdada do imaginário colonial e reforçada por décadas no cinema e na publicidade, ainda persiste e assume novas formas na internet.

Depois que o mundo passou a consumir de forma massiva os conteúdos sul-coreanos, grupos como BTS, BLACKPINK, EXO e NewJeans, além de dramas como Descendentes do Sol, Pousando no Amor e Rainha das Lágrimas ajudaram a romper estigmas e a apresentar uma nova narrativa sobre o que é ser asiático. De certa forma, o sucesso dessas produções também desafia a antiga invisibilidade dessas pessoas na mídia ocidental.

Pela primeira vez, muitos jovens de diferentes países com ascendência amarela se viram representados por artistas carismáticos e talentosos. Mas a contradição vem a partir dessa mesma visibilidade, que ao mesmo tempo em que aproxima e gera empatia, distorce.

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Passou a ser frequente, principalmente nas redes sociais, fãs reproduzirem certos padrões de fetichização ao romantizar os traços físicos, sotaques e comportamentos de homens coreanos. Comentários como “gostaria de namorar um coreano” ou “os homens coreanos são todos perfeitos” exemplificam como a cultura pop pode alimentar uma visão homogênea, reduzindo pessoas reais a estereótipos idealizados.

É claro que a própria indústria sul-coreana tem responsabilidade nesse processo, uma vez que os astros do k-pop e dos k-dramas são conhecidos pelo alto controle visual. Esses padrões, reforçados por câmeras, filtros e cirurgias, acabam exportando um modelo padronizado que o público global passa a desejar e querer replicar. O perigo fica ainda maior quando outras pessoas asiáticas, de dentro ou fora da Coreia, passam a sofrer comparações, julgamentos e expectativas irreais baseadas nesse mesmo ideal. 

“Muitas pessoas ainda chegam aos dramas coreanos acreditando que são todos comédias românticas inocentes, e acabam se deparando com mocinhos bonitos e gentis. Por ser uma cultura com a qual muita gente nunca teve contato direto, muitos passam a acreditar que aquele homem romântico representa o homem coreano padrão, e que o lado doce mostrado nas produções define toda a cultura”, aponta Manu Gerino, criadora de conteúdo focado em dramas asiáticos.

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Oppa e a ilusão do homem perfeito

Nos últimos dias, as autoridades coreanas no Brasil passaram a  investigar o site K-drama Date, que chamou atenção ao oferecer supostos encontros e experiências românticas com homens coreanos. Apresentada como uma plataforma inspirada em k-dramas e j-dramas, a página promete passeios, jantares e até atividades íntimas agendadas diretamente por WhatsApp. O Consulado-Geral da República da Coreia em São Paulo e a Associação de Coreanos no Brasil apuram denúncias que indicam possíveis casos de exploração e tráfico sexual envolvendo o serviço.

“O Consulado-Geral da República da Coreia, dando continuidade à apuração referente ao site noticiado nos últimos dias, informa que as investigações preliminares constataram que o caso não se restringe a um possível golpe ou estelionato. Com base nas evidências, provas e depoimentos colhidos até o momento, foi identificado o crime de exploração sexual, tipificado nos Artigos 228 e 230 do Código Penal Brasileiro”, diz um comunicado oficial emitido pelo perfil do Consulado no Instagram.

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“Costumo pensar nas implicações disso especialmente para as meninas. O fetiche racial é um problema por si só, mas, como mulher, também me preocupo com o impacto que isso tem sobre nós. Não sou a favor do moralismo e acredito que não há problema em uma mulher contratar esse tipo de serviço se for o que ela deseja. No entanto, no contexto do K-drama Date, não se trata apenas de uma relação física: há uma encenação emocional, uma ilusão de viver aquele romance com um oppa. E isso mexe com o psicológico, porque a fantasia passa a se confundir com a necessidade de afeto real”, explica Manu, que publicou um video em seu canal no YouTube analisando o suposto site de encontros.

 

“Quando o site foi lançado, o endereço divulgado era falso e pertencia ao Centro Cultural Hiroshima do Brasil, que confirmou ao presidente da Associação Brasileira dos Coreanos, Bruno Kim, que o local foi usado indevidamente. O CNPJ também não corresponde e está registrado em nome de uma empresa de cosméticos. Esses dados desencontrados levantam um alerta sobre a falta de transparência e segurança”, diz ela.

O desafio é distinguir a admiração do fetiche. Gostar de um grupo ou ator, aprender o idioma ou se interessar pela cultura não é nenhum problema, mas tratar pessoas como produto, sim. “É claro que muita gente ainda consome os dramas ou as músicas apenas como uma válvula de escape, sem buscar profundidade nas histórias ou que ainda idealiza homens coreanos e se recusa a aceitar críticas a cantores e atores denunciados por violência, por exemplo. Mas entre os fãs, o cenário está melhorando e acredito que isso seja reflexo da própria sociedade. É divertido chegar em casa após um dia cansativo e assistir uma comédia romântica, mas também é importante refletir sobre o nosso papel no mundo e assistir a produções que falem sobre nós, nossas experiências, desafios e questões mais profundas”, completa.

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