Homem com H é o filme que Ney Matogrosso merecia: ‘Tudo ali é verdade’

Com direção de Esmir Filho e atuação impressionante de Jesuíta Barbosa, filme emociona ao mostrar um Ney sem amarras — nos palcos, nos amores e na vida.

Por Arthur Ferreira Atualizado em 24 abr 2025, 08h24 - Publicado em 24 abr 2025, 08h24
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om estreia marcada para 1º de maio e sessões antecipadas em algumas capitais no dia 30 de abril, Homem com H, dirigido por Esmir Filho, é um retrato arrebatador de Ney Matogrosso. A cinebiografia foge do óbvio, do cronológico seco, e escolhe falar sobre identidade, liberdade e resistência.

“Quando me ligaram com a proposta, foi como um presente. Eu cresci assombrado pela imagem do Ney, querendo entender o que ele estava dizendo pra mim”, contou Esmir na coletiva de imprensa realizada nesta quarta-feira (23), após sessão exclusiva do filme em São Paulo. A conexão do diretor com a história do cantor é visível na tela — e talvez por isso o filme acerte tanto.

A atuação de Jesuíta Barbosa impressiona. O ator não imita, ele encarna. O corpo, a respiração, o olhar. “A gente tentou trabalhar o Ney a partir de um lugar de integridade”, disse o ator. “A nossa vontade era reproduzir uma energia própria. Que tivesse força dessa figura do Ney, mas também minha.”

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A simbiose entre personagem e intérprete se deu também nos detalhes: algumas cenas misturam voz original e dublagem, mas Ney faz questão de deixar claro: “Ele canta. Quando a gente vê ele cantando, a musculatura está funcionando. Não está na boca, ele está cantando.”

Com bastidores de composições, figurinos e momentos icônicos da carreira, o longa percorre décadas. Da infância de Ney em Bela Vista (MS) até o fim dos anos 90. Não tenta dar conta de uma vida inteira — e ainda bem. A narrativa é costurada com delicadeza: do menino confrontado pelo pai autoritário, passando pelo exército e os bastidores dos Secos e Molhados.

É a partir das recriações de palco que o filme ganha um tom magnético. Há um contraste poderoso entre o Ney reservado da vida privada e a fera que explode no palco. Um dos recortes mais bonitos do filme é esse: como um artista tão destemido publicamente também era introspectivo e sensível.

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A chegada de Cazuza (Jullio Reis) e Marco (Bruno Montaleone) traz leveza, juventude e paixão. As cenas de intimidade entre os três personagens são raras de se ver em filmes brasileiros sobre figuras públicas: são quentes, sim, mas acima de tudo carinhosas. O filme trata o afeto com afeto. E o sexo com verdade. Sem pudores — como o próprio Ney exigiu. “Esse tipo de pudor não cabe dentro de uma coisa dessa”, disse ele. “Tudo que está ali é verdade.”

E então vem a AIDS. A forma como o filme aborda a epidemia é simbólica e dolorosa. Uma das cenas mais impactantes mostra Ney e Marco deitados na cama, com o noticiário anunciando os primeiros casos no Brasil. Acima da cama, um quadro de Keith Haring — artista que morreu em decorrência da doença. Uma cobra sobe na cama e se arrasta pelo corpo de Ney adormecido. Parece um presságio. Mas Ney acorda e acaricia o animal. É uma imagem poderosa sobre coragem diante do medo, e sobre como ele enfrentou a perda dos amigos e dos grandes amores.

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A direção de Esmir Filho é repleta de escolhas simbólicas e emocionais. A fotografia e a direção de arte não buscam apenas recriar a época, mas evocar os sentimentos que ela deixava no ar. “Não queríamos reproduzir meramente aquela época. Queríamos reproduzir o sentimento daquela época”, disse Esmir, que também se envolveu profundamente com a discografia de Ney antes de começar o roteiro. “Ouvi tudo em ordem cronológica. Me interessava o que ele estava cantando na época que ele estava vivendo.”

Homem com H tem a coragem de mostrar Ney como símbolo de liberdade — sexual, estética, emocional. Mostra o primeiro relacionamento abusivo, os múltiplos parceiros, os conflitos com o mercado, com a mídia, com o conservadorismo. Ney não se deixou prender por nenhuma estrutura. O pai foi a primeira grande autoridade que ele enfrentou na vida, e isso serve como fio condutor para mostrar como ele reagiu a todas as outras.

Na última sequência, vemos o próprio Ney em cima do palco, em um show recente no Allianz Parque. A imagem diz tudo: ele está vivo, potente, performático. Ainda que o plano final originalmente fosse mostrá-lo em seu sítio, optou-se por um encerramento mais fiel à energia do artista. Afinal, Ney não se aposentou — ele segue incendiando palcos, corpos e mentes.

Depois de tantas cinebiografias insossas, Homem com H emerge como um retrato à altura de seu protagonista. Um filme que pulsa, que provoca, que emociona. Um filme que faz a gente sair do cinema sentindo que viveu algo — e talvez até um pouco mais livre.

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