Uso criativo da desobediência nos faz questionar tudo ao redor
Você provavelmente já ouviu as histórias das sufragistas, da Rosa Parks e da Malala. O que elas têm em comum? Ousaram desobedecer.
eninas e mulheres desobedecem desde sempre –não fosse por isso, não poderíamos sequer trabalhar ou votar. Mas a desobediência civil praticada por estudantes e ativistas continua sendo uma estratégia para conquistarmos cada vez mais igualdade, viu?
Desobediência civil, termo que surgiu no século 19 e que se refere ao ato de descumprir conscientemente leis que consideramos injustas –assim, elas entraram para a história e conquistaram direitos importantes para si e para milhares de outras pessoas que vieram depois.
Embora meninas e mulheres sempre tenham dado um jeito de participar da política, mesmo que de forma indireta, ao lado de seus pais ou maridos, elas só tiveram perspectiva de participar ativamente da vida pública há cerca de cem anos. Antes do século 20, algumas delas até receiam educação, aprendiam a ler e escrever, mas era quase impossível fugir do destino no trabalho doméstico ou em longas jornadas na indústria têxtil, que usava muita mão de obra de meninas ainda na infância, exatamente como mostra o filme Enola Holmes 2.
Foi só nas décadas de 1940 e 1950 que mulheres começaram a se emancipar –justamente quando começam a surgir conceitos como adolescência e juventude, como uma fase da vida mais livre, com tempo para encontrar amigos e explorar os limites. Até então, todo mundo começava a trabalhar muito cedo, logo casava e tinha filhos, explica a historiadora Mary del Priore, autora de “História dos Jovens no Brasil” (ed. Unesp, 2022).
Nessa época, ela conta, as mulheres começaram a praticar mais esportes, sair sozinhas e explorar sua sexualidade, especialmente com a chegada da mini saia, do biquíni e da pílula do dia seguinte – “uma sexualidade ainda muito tímida e muito ligada ao casamento, mas é um avanço”, fala a historiadora.
Junto com essas descobertas, os jovens começam a ter mais acesso também à consciência política, especialmente para temas como proteção do meio ambiente e combate às desigualdades.
Claro que não estamos dizendo para você sair por aí descumprindo as leis.
A ideia, aqui, é refletir sobre normas que, apesar de estarem na lei, são injustas e promovem a desigualdade, como a proibição do voto para mulheres ou o direito de comprar e vender pessoas negras, que já foram leis no brasil. Podemos pensar nas leis que proíbem o aorto na América Latina ou que permitem que pessoas trans sejam agredidas, em países como a Rússia.
Ei, você chegou até aqui nesse texto, certo? Então, das sufragistas à Greta Thumberg, vem conhecer junto com a gente a história de meninas e mulheres que, desobedecendo, conquistaram direitos e fizeram história que comemoramos até hoje.
Sufragistas
Manifestações de rua, greves de fome e pequenas explosões em lixeiras e caixas de correspondência –essas eram algumas das estratégias usadas pelas sufragistas, no final do século 19, na Inglaterra.
Na época, apenas homens podiam escolher seus representantes, e as mulheres queriam o sufrágio (ou seja, o direito de votar). Elas questionavam por que poderiam exercer cargos importantes, como de professoras, mas não poderiam ser eleitoras.
O movimento começou pacífico, manifestações de rua a manifestos publicados em jornais, mas à medida que eram reprimidas, elas endureciam suas práticas, partindo para confrontos físicos. Algumas foram presas e uma delas morreu, após tentar protestar em uma corrida de cavalos e ser atropelada por um dos animais.
Demorou mais de duas décadas até que a Inglaterra finalmente igualasse o direito ao voto entre homens e mulheres, em 1918, mas o movimento sufragista continuou em diversos outros países, como o Brasil, que só permitiu que mulheres se tornassem eleitoras na década de 1930.
Rosa Parks
Em 1955, quando voltava para casa depois do trabalho em Montgomery, nos Estados Unidos, Rosa Parks pegou o ônibus ainda vazio, mas, conforme o coletivo foi enchendo, o motorista ordenou que as pessoas negras sentadas se levantassem e fossem para o fundo, liberando assento para os brancos. Na época, vigorava no estado do Alabama a lei de segregação, que autorizava a separação de brancos e negros em espaços como escolas, hospitais e restaurantes –sempre privilegiando os brancos.
Mas, ao invés de obedecer à ordem, Rosa respondeu um sonoro “não”. O motorista esbravejou, chamou a polícia, e ela continuou sentada. Só saiu do veículo algemada, direto para a delegacia, onde passou a noite. A história de sua prisão se espalhou pela cidade e ativistas decidiram usá-la para promover protestos contra a lei de segregação, começando por um boicote aos ônibus da cidade de Montgomery. A ação teve apoio massivo da população negra, incluindo de líderes religiosos como Martin Luther King.
Menos de um ano depois do “não” histórico, a Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou a lei da segregação racial e Rosa Parks se tornou símolo da luta por direitos civis, não sem antes sofrer perseguições de supremacistas brancos da cidade e até ter que deixar o estado do Alabama para sua própria segurança e sobrevivência.
Malala Yousafzai
O nome da ativista paquistanesa começou a ser conhecido pelo mundo em 2012, quando, aos 15 anos, ela foi baleada três vezes na cabeça por tentar chegar até a escola. Isso mesmo. Na época, seu país estava sob domínio do Talibã, um movimento fundamentalista islâmico, que proibia que meninas estudassem.
Àquela altura, além de contrariar o Talibã por insistir em ir à escola, ela também escrevia mas Malala, filha de um casal que geria uma rede de escolas, desobedeceu a norma e embarcou numa van em direção à aula –no entanto, não chegou, porque foi ferida durante o trajeto. À época, Malala já era uma ativista: além de insistir em estudar, o que era proibido, ela também escrevia para a BBC relatando o cotidiano de uma adolescente sob o regime Talibã, usando um pseudônimo.
Malala passou uma semana em coma e se recuperou totalmente. Quando recobrou a consciência, percebeu que a tentativa de homicídio levantou um movimento internacional em sua defesa, com protestos pelo Paquistão, campanhas de órgãos internacionais como a ONU e mais de dois milhões de assinaturas em uma petição da campanha Right to Education, que se transformou na primeira lei de acesso à educação no Paquistão.
Movimento secundarista de São Paulo
Em 2015, mais de 200 escolas passaram meses sem aula no estado de São Paulo. O motivo? Alunas e alunos entraram, fecharam as portas e ocuparam o espaço em defesa de suas escolas, que estavam sob ameaça de serem fechadas no ano seguinte, com a Reforma do Ensino Médio proposta pelo então governador Geraldo Alckmin. Embora o movimento secundarista, como ficou conhecido, envolvesse meninas e meninos, foram as alunas as principais lideranças –fotos da época mostram estudantes de 14, 15 e 16 anos enfrentando policiais em reintegrações de posse e carregando cartazes em defesa da educação pública, com frases como “primavera secundarista” e “minha escola, minha escolha”.
Uma delas foi a atriz Lilith Cristina, que na época cursava o primeiro ano do Ensino Médio e se mobilizou com outros estudantes para pular os muros da Escola Estadual Maria José, no centro da capital paulista, e passar 40 dias lá dentro. Ela chegou a levar um tapa no rosto do então diretor da instituição e viu amigos serem agredidos pela polícia. Em entrevista à CAPRICHO, ela contou que esse período “foi um pesadelo”, mas que faria tudo de novo.
Após quase dois meses de manifestações, Geraldo Alckmin demitiu o então secretário de Educação e voltou atrás e desistiu de aplicar a reforma. Nenhuma escola foi fechada.
Greta Thunberg
Antes de chamar a atenção do mundo para as mudanças climáticas, Greta chamou a atenção de seus pais e os convenceu a mudar hábitos do cotidiano para reduzir emissões de carbono. Aos 15 anos, começou a faltar à escola para protestar em frente ao Parlamento sueco, exigindo que o país adotasse medidas mais severas de proteção ao clima, e em pouco tempo estava liderando milhares de estudantes em diversos países. Mas, quando discursou na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática de 2018, o movimento explodiu em greves estudantis pelo mundo todo.
Greta Thunberg é neuroatípica: foi diagnosticada transtorno do espectro autista, TDAH, TOC e mutismo seletivo. Ela reconhece que pode ter algumas dificuldades em razão desses diagnósticos, mas diz que “ser diferente é um superpoder”.
A atuação de Greta, atualmente com 20 anos, segue firme e forte: em 2023, ela recebeu aval da justiça para processar o governo sueco por praticar uma política ambiental “insuficiente” e foi detida pela polícia da Noruega durante um protesto contra turbinas eólicas que seriam construídas no território do povo Sami, o único grupo indígena reconhecido na União Europeia.