Porte de armas na vida real é “proteção” mas em games é “ameaça”

Existe lógica em criminalizar jogos e gamers ao mesmo tempo em que descriminaliza tantos outros conteúdos violentos aos quais temos acesso no dia a dia?

Por Isabella Otto Atualizado em 31 out 2024, 02h21 - Publicado em 16 mar 2019, 10h31

GTA é meu game favorito e eu descobri isso ainda criança ao ver meus primos jogando Vice City. O ano era 2002 e eu tinha 10 anos. Por ter sido durante anos a única menina em uma família com apenas primos homens, eu vivia em constante exposição a jogos violentos, como Grand Theft Auto, Resident Evil, Mortal Kombat… Até as sessões de RPG que fazíamos se tornavam violentas. Afinal, nós tínhamos a possibilidade de escolher armas para combater o vilão da partida de uma maneira bastante sanguinária. Até The Sims se transformava em um jogo de horror em alguns momentos, quando decidíamos matar um personagem afogado ou queimado só para ter uma lápide no jardim de casa. E não dá para dizer que não nos divertíamos com essas situações – se você já jogou The Sims e fez uma dessas loucuras permitidas na ficção, sabe do que estou falando. Mas nem meus primos nem eu nos tornamos pessoas violentas, mesmo tendo oportunidades para isso. Todos nós temos, na realidade. Seu lado violento pode ser despertado no trânsito, no transporte público, na escola, em uma discussão, em um jogo de futebol… Todos nós somos suscetíveis e temos algo de destruidor, mas não é porque você desempenha o papel de um personagem sanguinário no GTA (tamo junto, Trevor!) que vai sair por aí atropelando pessoas e matando inocentes nas ruas.

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O vice-presidente do Brasil, Hamilton Mourão, contudo, discorda disso. Ao se manifestar sobre o massacre que aconteceu na última quarta-feira, 13, na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano, que deixou dez vítimas fatais e outros tantos feridos (na pele e na alma), o político culpou a má influência que alguns jogos podem ter sobre as pessoas. “Hoje, a gente vê essa garotada viciada em videogames e videogames violentos. Só isso que fazem. Quando eu era criança e adolescente, jogava bola, soltava pipa, jogava bola de gude, hoje não vemos mais essas coisas. É com isso que temos que estar preocupados“, disse. Em contrapartida, quando questionado sobre o fato de apoiar a política de flexibilização do porte de armas, o general falou que “não tinha nada a ver” e que essa relação seria usada pela “oposição” para tentar derrubar um projeto de governo que visa a segurança dos cidadãos. A fala foi apoiada pelo senador Major Olímpio, que disse que, “se a legislação no Brasil permitisse o porte de armas, um cidadão de bem na escola, seja um professor ou um servente, evitaria a tragédia”.

Então, quer dizer, ter acesso a uma arma dentro de um jogo de ficção, que muitas vezes é utilizado como uma forma de escape para descontar a raiva acumulada no dia a dia, é algo que incita a violência, mas ter acesso facilitado e legal a uma arma na vida real não estimula tal agressividade, mas causa uma sensação de proteção e segurança? Por mais que eu tente me esforçar, e olha que eu tento, não vejo lógica nesse raciocínio. Se você é contra jogos violentos, deveria se posicionar contra qualquer outra coisa que possa estimular a violência: a política de descriminalização de armas de fogo, o (des)jornalismo que ganha audiência em cima de mortes, tragédias e lutos alheios, seriados, filmes, cenas de novelas, deep web… Não seria o mais coerente?

A banalização da morte e como cada um lida com ela, ao meu ver, é a realidade que mais preocupa. Nós ligamos a televisão e nos deparamos com uma enxurrada de notícias violentas, acessamos os serviços de streaming e nos deparamos com uma série de conteúdos violentos, entramos nas redes sociais e muito do que vemos são formas violentas de se comportar em sociedade. O próprio bullying é algo extremamente violento, tanto para quem pratica quanto para quem recebe. Mas basta descobrirem que um assassino jogava videogame para toda a atenção ser voltada ao Fortnite, ao Call of Duty, ao God of War, ao Assassin’s Creed, ao Soldier of Fortune… E por mais que não haja nenhuma comprovação científica de que games realmente deixam as pessoas mais violentas, e sejam publicados muitos estudos sobre o assunto, as pessoas insistem em culpar a sobrecarga de violência dos jogos e ignorar a de um filme de ação ou de uma reportagem que mostre o passo a passo de como aquele crime foi cometido. Nós vivemos em um mundo violento, mas nem todo cidadão que comete atos de violência tem acesso a games – e nem todo cidadão que é gamer comete atos violentos.

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É claro que, em alguns casos, os jogos, assim como qualquer outro conteúdo brutal que foi citado aqui anteriormente, pode funcionar como um gatilho. Mas são situações muito específicas, em que um conjunto de fatores deve ser levado em conta. O psicólogo Dr. Vitor Friary discorre mais sobre o tema: “Estudos conduzidos sobre esse tipo de massacre em escolas e sobre jovens que cometem esse tipo de crime dizem que, na maioria das vezes, essas pessoas têm em comum problemas graves dentro da família, falta de suporte familiar e também transtornos mentais graves. Outras motivações para essas atrocidades são um desejo de resolver problemas, um desejo de suicídio com vingança, a experiência do bullying e/ou o sentimento de ser perseguido por outros jovens ou por adultos, e também como uma maneira de se obter atenção e reconhecimento”. 

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Vitor ainda explica que não tem como desvincular o comportamento dos seres humanos que cometem atos de tamanha atrocidade dos traços de psicopatia. “É preciso ter uma baixo nível de empatia e compaixão, e essas são características muito pertinentes do que conhecemos como Transtorno de Personalidade Antissocial”, explica. Nesses casos, qualquer escape violento (seja um jogo, um fórum na internet, um livro, uma pessoa ou um projeto de lei) pode causar um estímulo e até funcionar como gatilho. Porém, são casos em que a personalidade da pessoa já está comprometida, não porque ela tenha nascido assim, mas, na opinião do psicólogo, porque acontecimentos da vida a moldaram dessa maneira. Como acreditava o filósofo Rousseau: o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. “Dentro de uma perspectiva comportamental e cognitiva da psicologia tudo é passível de transformação. A própria neurociência já nos confere esse saber com as proposições baseadas nos princípios da plasticidade neuronal. Isto é, o cérebro se transforma conforme as experiências e atividades vividas. Portanto, a predisposição, se existe, pode ser trabalhada e transformada. É claro que muitos fatores podem influenciar o nível de violência de uma pessoa, tanto fatores biológicos e genéticos, como fatores sociais, como o lugar em que jovem ou criança vive, assim como as características de suas relações. Por último, os traços de violência podem ter uma origem psicológica, que é a maneira individual que aquela criança ou jovem tem de pensar sobre as situações que vive, sobre si mesmo, os outros, e as relações e estratégias que aprendeu na vida para enfrentar essas frustrações”, esclarece o especialista Friary. 

Se generalizações já são bastante perigosas, elas se tornam ainda piores quando vêm acompanhadas de incoerência. Achar que armas de fogo representam algum tipo de perigo na ficção, mas não representam nenhum tipo de ameaça na vida real, apenas sensações de proteção, segurança e justiça, é concordar com uma frase muito famosa da franquia Assassin’s Creed que diz o seguinte: “Nada é verdadeiro, tudo é permitido”. E logo você, que diz que é com esses tipos de coisa que temos que estar preocupados?! A comunidade gamer é extremamente tóxica em muitos sentidos, principalmente para as mulheres, mas culpar os jogos é permanecer numa zona de conforto irreal e ignorar outros tipos de armamento que temos disponíveis para fazer o mal.

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