Assim como o lixo hospitalar, que segue sendo produzido em maior escala, devido ao aumento de máscaras e luvas descartáveis que estão sendo usadas como medidas de prevenção ao coronavírus, o lixo doméstico também aumentou durante a quarentena, no Brasil e no mundo. Mais pessoas fazendo mais refeições em casa, indo ao mercado para fazer comprar maiores, investindo em produtos descartáveis para diminuir o risco de transmissão e contágio… Segundo Bruno Covas, prefeito de São Paulo, já houve um aumento de 12% na quantidade de lixo durante o período de isolamento. Em contrapartida, os lixos descartados em vias públicas caíram de 4,1 mil toneladas para 1,8 mil toneladas, de acordo com levantamento do g1. Isso significa ruas mais limpas e, consequentemente, rios e mares recebendo menos descartes tóxicos.
O comportamento humano durante a quarentena está afetando diretamente a natureza: a qualidade do ar está melhorando consideravelmente devido à queda da poluição atmosférica causada pela atividade industrial e por automóveis, as águas estão ficando mais límpidas e os animais estão mudando hábitos e comportamentos. Ratos, por exemplo, estão sendo vistos com mais frequência em algumas cidades bastante populosas, como Nova York. Especialistas explicam que, com menos lixo sendo descartado nas ruas, os animais acabam tendo que se deslocar mais para encontrar comida. Além disso, o isolamento humano faz com que eles se sintam mais seguros para explorar e, por que não, sair também durante o dia.
Para analisar a pandemia de COVID-19 do ponto de vista ambiental, e o que podemos aprender com suas consequências, conversamos com a Fe Cortez, ativista ambiental, conselheira do GreenPeace Brasil, defensora da campanha “Mares Limpos” pela ONU Meio Ambiente e idealizadora do projeto “Menos 1 Lixo”.
CH: A pandemia de coronavírus está sendo um momento bom para falarmos sobre meio ambiente e refletirmos nossas ações. Você acredita ser possível levar algo de bom desse momento tão angustiante?
Fe Cortez: Eu acredito que o coronavírus é uma grande oportunidade para a humanidade. Talvez o episódio mais importante do último século. Porque nunca antes a gente conseguiu fazer com que as pessoas repensassem a forma do piloto automático que a gente estava. Os cientistas vêm alertando sobre mudanças climáticas, que já virou “crise climática” e “caos climático”, desde os anos 70, e a humanidade não faz nada por conta do capitalismo. É uma grande hora da gente repensar o sistema e repensar a nossa relação com a natureza porque, até então, estava num momento de olhar pra natureza com uma visão de domínio e de separação como se a gente não fosse a natureza. E a gente está entendendo que o que mantém a gente vivo aqui é a natureza, é a nossa casa. A gente está antecipando uma reflexão que poderia vir de uma maneira muito pior, com crise de alimento séria, com muitas pessoas passando fome, que estava prevista pra começar bem em breve com essa mudança climática. Acho que ela vem num momento muito oportuno para a humanidade pensar como um todo: “o que a gente está fazendo aqui?”, “pra que que a gente acorda e pra que a gente vai dormir?”. É muito mais profundo. Eu vejo o coronavírus como uma grande oportunidade da gente se reinventar enquanto humanidade porque não dá pra gente basear a vida de mais de 7 bilhões de pessoas num sistema que não tem resiliência nenhuma e que só protege os ricos, que é o capitalismo.
CH: Você compartilha muitas notícias positivas sobre o coronavírus no Instagram do “Menos 1 Lixo”, como a diminuição da poluição atmosférica e o aumento da procura por adoção de cães e gatos. Teve alguma notícia até agora que mais mexeu com você e te fez pensar?
Fe Cortez: A notícia que mais me fez pensar foi a dos golfinhos e da água transparente em Veneza. E no que me fez pensar? No quanto Gaia, a Mãe Natureza, é um ser vivo com uma capacidade de resiliência que a gente não tem ideia. Na verdade, com uma capacidade de regeneração que a gente não tem ideia. Então, quando a gente deixa um lugar, sem interferir massivamente como é, por exemplo, a interferência dos barcos nos canais de Veneza, os animais voltam, a água rapidamente fica clara de novo. A gente precisa, sim, mudar nosso ritmo e nosso consumo pra a gente dar espaço pra a vida florescer.
CH: Nessa situação de isolamento, muitas pessoas acabam erroneamente estocando comida, desperdiçando outras tantas e gerando mais lixo que de costume. Como lidar com isso? O que podemos fazer para diminuir o lixo gerado em casa? Compostagem é uma solução?
Fe Cortez: Sobre geração de lixo nesse momento, na Itália viram que aumentou, mais ou menos, em 20% no primeiro mês, justamente porque as pessoas começaram a comprar muito e pedir delivery. Não pedir delivery nesse momento – mercado ou comida – é uma questão séria porque a gente não pode ir pra rua. Mas acho que tem duas coisas que a gente pode fazer e que são sistêmicas. Diminuiu a taxa de reciclagem porque os catadores são do grupo de risco e eles não podem ficar em contato com o lixo de pessoas contaminadas. Então, a gente abandonar um pouco os industrializados e ir para os alimentos frescos, orgânicos, hortaliças, legumes e verduras, abandonar as latinhas e os empacotados e pedir de pequenos produtores. No Rio de Janeiro, e já vi que em outras cidades, temos um movimento muito grande de produtos de orgânicos fazendo entrega. Quem alimenta a gente são os pequenos produtores. E nesse momento é muito importante a gente comprar deles! Uma escolha de consumo interessante é essa. Outra escolha é fazer um planejamento de cardápio para que a gente possa otimizar o uso dos alimentos. Abriu um pacote de alguma coisa? Como você pode usar esse pacote rápido para ele não estragar? É uma mistura de planejamento com mudar e sair dos industrializados e entrar nos produtos naturais. Inclusive, sistematicamente, é muito bom, porque a gente ajuda essas pessoas que são as pessoas que realmente colocam a comida na nossa mesa. Não é o agroindustrial, a monocultura gigantesca que bota comida na nossa mesa. Quem põe comida na nossa mesa é o pequeno produtor.
CH: Você abordou no Instagram a questão de ser possível viver sem papel higiênico, item que ficou em falta em muitos supermercados. Papel toalha também é um item raros em certos lugares. Quais outras coisas do dia a dia podemos aposentar e aproveitar a quarentena para fazer esse teste?
Fe Cortez: A gente pode aposentar todos os produtos de limpeza que a gente conhece como clássicos, desde sabão em pó, passando por amaciante e indo para aqueles desengordurantes e tudo que a gente tem para limpar sanitários, vidros, etc. Eu fiz uma série “Dicas da Fe Cortez” há um tempo no YouTube e um dos episódios é como que a gente limpa a nossa casa com três ingredientes: vinagre de álcool, bicarbonato e sabão de coco – e, agora, eu acrescentei a essa lista o limão, porque a primeira parte da minha quarentena foi na roça e eu usei muito limão e nenhum produto de limpeza. Então, o limão resolveu: limpa pia, limpa banheiro, limpa uma série de coisas porque ele é adstringente, bactericida, fungicida, tira mancha de roupa, entre outras coisas. É uma ótima oportunidade para a gente fazer a limpeza da nossa casa com mais consciência e abandonar o que a gente acha que precisa. Trocar o detergente pelo sabão de coco, por exemplo, ou pelo sabão que a gente faz com bicarbonato e sabão de coco.
CH: Desacelerar tem relação com sustentabilidade e o meio ambiente? De que forma?
Fe Cortez: Desacelerar tem tudo a ver com o meio ambiente e com esse momento porque a gente, a cada ano, entra no “cheque especial” – ou no Dia da Sobrecarga da Terra – mais cedo. O que é esse dia? É o dia que o planeta esgota todos os recursos que ele consegue regenerar naquele ano. Agora a gente tem uma ótima oportunidade de repensar os nossos ritmos. Eles começam pelo ritmo da nossa vida: a gente está sempre correndo, não presta atenção no fundamental, porque a gente está sempre com muita distração. Essa é a cultura do Ocidente. Mesmo agora na quarentena, muita gente, ao invés de usar esse tempo para silenciar, pra meditar um pouco, pra refletir, pra mudar o ritmo da vida, acaba consumindo muita informação. Não sai do Instagram nem do WhatsApp. E esse ritmo não permite a autorregulação, que é fundamental para qualquer sistema vivo. Então, quando a gente desacelera nossa vida, nosso consumo, nossos pensamentos, a gente desacelera todo o entorno porque a frequência muda. E o consumo do nosso estoque de vida, vamos dizer assim, que é o planeta, também diminui, também desacelera. A gente possibilita gerar mais vida ao redor e dentro da gente. A gente se desconectou há muito tempo dos ritmos naturais, dos ritmos da natureza. O nosso calendário é um exemplo disso. A gente mudou de calendário lunar para um calendário gregoriano, que foi criado baseado na cobrança de impostos. A gente está muito desconectado. É um calendário que rege o mundo. É hora de desacelerar porque estamos desconectados do ritmo da natureza. E muitas doenças que a gente vê por aí são consequência disso.
CH: Muito se tem falado sobre os benefícios ecológicos do isolamento social, como a paralisação das indústrias e a diminuição do tráfego. Para a economia, contudo, essas ações são maléficas. Como lutar pelo meio ambiente em um mundo tão capitalista?
Fe Cortez: A gente vai ter que reinventar o capitalismo. E quando eu falo isso, não estou dizendo pra gente voltar ao socialismo, porque ele também não funcionou. Mas existem inúmeros pensadores e economistas que estão trazendo alternativas pra gente repensar o capitalismo. Não tem como continuar da maneira que era ou é. A gente vai, sim, ter que repensar a economia porque a quem ela serve? A quem ela beneficia? A gente tem, hoje, poucas famílias no mundo que têm o equivalente, em dinheiro, a renda de 3.5 bilhões de pessoas mais pobres. Esse dado foi divulgado por uma organização que se chama Oxfam. Não dá para um sistema como esse continuar, porque ele não traz igualdade entre os seres humanos e é baseado num modelo de economia linear extrativista. A gente tira da natureza, transforma aquilo em produto e descarta. Uma saída rápida pra gente repensar seria caminhar para um modelo de economia circular. Mas, independente do modelo que a gente vai caminhar e que tem que acontecer, a gente precisa diminuir nosso consumo. A gente não pode basear nossa vida em ser uma engrenagem do sistema capitalista nem encontrar todos os serviços de tudo. A gente precisa repensar nossa forma de viver em sociedade. O que a comunidade pode oferecer pra gente sem a gente ter que pagar? Moedas complementares. A gente emprestar nosso tempo, fazer um banco de horas com outras pessoas. Tudo isso já está rolando. Moedas de economia local. Enfim, tem uma série de coisas acontecendo e outras que a gente vai ter que repensar. Mas, quando acabar a pandemia, a gente não pode voltar ao que a gente chama de business as usual, ou seja, voltar a fazer as coisas da mesma maneira. Esse seria o maior erro da humanidade, porque senão a gente não vai ter entendido nada desse grande recado, dessa grande oportunidade que a gente está recebendo de repensar nossa vida pra que a gente construa aqui um sistema de regeneração em que haja mais vida do que morte como é esse que a gente vê agora.
É importante ainda destacar que, recentemente, o “Menos 1 Lixo” lançou um manifesto em defesa da natureza sobre regeneração em tempos de coronavírus e colocou todo seu estoque de copos retráteis, símbolo do projeto, a preço de custo. Cada um está saindo por R$ 29,90 e para comprar bastar entrar no site do movimento.