O ano é 2020 e tratar mulher como exceção no mundo nerd não mais basta
Uma exceção à regra pode ser encarado como algo legal, especial, diferente, e isso é o que justamente lutamos todos os dias para não mais ocorrer
Houve um tempo em que mulheres eram mesmo minoria no universo nerd, muito porque, desde o começo de sua existência, o sexo feminino foi privado de alguns tipos de conhecimento, aqueles que eram privilégio dos homens, e isso contribuiu para moldar a sociedade em que hoje vivemos, em que muita gente, mulheres e homens, ainda acredita que o papel feminino é o de agradar o masculino e, é evidente, cuidar da casa como uma obrigatoriedade. Que retrocesso.
Durante muito tempo, fui a única menina entre meus três primos, que se reuniam para jogar Magic, PlayStation e RPG. Eu também jogava e já me irritava quando era tratada como café com leite – só por ser garota. Na escola, eu também era a única do meu grupo de amigas que gostava “dessas coisas”, como elas mesmo diziam. Não demorou muito para eu fazer amizade com os meninos da classe que se reuniam para jogar FIFA, discutir sobre a Idade Média, jogar Tibia e falar sobre nerdices. Não quis festa de 15 anos. Quis um aniversário em casa com o tema Harry Potter. Daí eu cresci mais um pouco, comecei meu primeiro estágio e ganhei meu primeiro salário. Comprei, na época, o novo Xbox e o jogo Skyrim, ambos divididos em mil prestações. Foi tudo! Para você que está lendo, pode parecer meio legal ter sido a “diferentona” da turma, aquela que era “aceita” pelos meninos, e confesso que, no auge dos meus 15 anos, isso meio que inflava meu ego de alguma forma, mas não tem nada disso. Ou, melhor dizendo, tem sim. E é tudo bastante problemático.
Em 2016, fiz uma entrevista com a Flávia Gasi, para mim, uma das referências quando o assunto são games. Na época, ela me deu a seguinte aspa: “Em casa, nunca fui tratada de forma diferente [por ser mulher e gostar de videogame]. Para mim, era normal. Quando eu jogava com as minhas amigas, era normal. Foi só quando entrei no mercado de trabalho que descobri que não era tão normal assim. O tratamento era meio glamourizado por eu ser menina e jogar videogame, o que é besteira. Mas a gente sempre esteve lá, só nunca falou muito sobre isso”. Conversando com algumas amigas, pois foi só na faculdade que encontrei minha turma de garotas que também gostavam de jogos e eram nerds, percebi que esse era um cenário comum. A mulher que jogava era glamourizada, como se ela fosse diferente ou especial por isso. Desde minha primeira CCXP, escuto coisas do tipo nos corredores do evento, nas filas para entrar nos painéis, no caixa para comprar um frozen. Não há nada de especial em ser uma mulher que gosta do universo geek. Existem meninas que gostam de boneca, meninas que gostam de bola, meninas que gostam de games, meninas que não gostam de nada disso e meninas que gostam de tudo isso – e tá tudo certo. Nenhuma é menos ou mais especial. Na verdade, todas são únicas, maravilhosas e extraordinárias, mas não por seus gostos ou suas preferências. O que pega aí é a questão da aprovação masculina.
Pensa: quando você é adolescente, tentando encontrar sua turma, e escuta de garotos que você é diferente das outras por conseguir debater sobre GTA, pode parecer meio incrível, né? No fundo, é só uma questão de aprovação masculina. Quando você entra no mercado de games ou frequenta locais como a CCXP, a BGS ou o Anime Friends, e é tratada com certa glamourização por ser do sexo feminino, pelo público e pela mídia, também é um lance de aprovação masculina. Afinal, durante muito tempo, os caras foram maioria nesse universo e ditaram muitos dos comportamentos machistas que somos obrigadas a ver até hoje. Parece que, para você ser aceita no “grupinho”, precisa agir como eles e do aval deles. Só que é justamente o contrário: você não precisa.
É evidente que o machismo no mundo nerd vai muito além disso e é estrutural – sem falar do racismo, do classismo e da LGBTfobia. Por exemplo, no universo cinematográfico, temos uma média de 48 mulheres para 1.223 homens no comando de filmes, segundo pesquisa realizada pela Universidade do Sul da Califórnia, entre os anos de 2007 e 2016. No começo deste ano, entre as seis principais estreias do cinema, quatro eram inspiradas em HQs, feitas e dirigidas por mulheres. Por conta da pandemia de coronavírus, os títulos Viúva Negra, com Scarlett Johansson e dirigido por Cate Shortland, e o longa de super-heróis Os Eternos, que tem Chloé Zhao na direção, foram adiados para 2021, mas ainda assim tivemos Aves de Rapina, comandado por Cathy Yan, e Mulher-Maravilha 1984, dirigido por Patty Jenkins e protagonizado por Gal Gadot. Foi uma belo início para um terrível 2020. (risos nervosos)
Em 2018, um levantamento feito pela Omelete Company em parceria com o IBOPE apontou que 38% do público nerd é composto por mulheres. Nos últimos anos, o número tem crescido, mesmo que timidamente. Em alguns setores, como no mercado de games, mulheres já são metade dos 67 milhões de jogadores que temos no Brasil, empatadas com o público masculino. Ainda temos um longo caminho pela frente, de expor aqueles que assediam cosplayers femininas, de lutar contra o machismo no mercado de trabalho, de banir usuários misóginos em partidas de grupo online e de ocupar espaços do quais sempre fizemos parte, mas ou tínhamos medo de marcar presença ou nos convencíamos de que eles não eram para nós.
Se exceção é um substantivo feminino que significa “desvio de uma regra ou de um padrão convencionalmente aceito e “aquele que se desvia ou exclui de regras e padrões”, continuar tratando o público feminino nerd como isso não funciona mais, porque não mais relata o machismo que as mulheres ainda sofrem dentro do tóxico universo geek – até porque isso tudo mundo já está cansado de saber. É preciso ir além. Há outras maneiras mais atuais de denunciar e lutar contra o machismo nocivo do universo sem ser reforçando aquele meme que vive circulando por aí do cara jogando videogame enquanto tem “a namorada dos sonhos” sentada em seu colo, só de lingerie e toda produzida, porque, afinal, é assim que jogamos quando estamos em casa, né? Tem uma parcela bastante significativa de nerds que continua fixada nessa ideia fomentada por delírios de rapazinhos em plena puberdade, que se acostumaram a ver personagens hiperssexualidades em games, e que não mais devemos reproduzir por aí, pois isso é continuar dando moral para a aprovação masculina, para a glamourização e sexualização das minas nerds, e para o machismo estrutural desse universo mágico – que não é nem um pouco ficcional.
Nós somos super-heroínas por existirmos, por nós mesmas, por quem somos. Nós não precisamos reproduzir padrões machistas para sermos aceitas ou fazermos sucesso nem devemos mais ser tratadas como exceção. É tempo de virar o jogo e exigir esse tratamento daqueles lá em cima, que estão no poder e continuam ditando as normas para aqueles que estão em suas casas, jogando, assistindo a filmes e séries, participando de campeonatos e passeando pelos corredores (mesmo que virtuais) da CCXP Worlds.