Não ter mais uma Hannah Montana é perder noções da adolescência
Você pode não perceber, mas as novas gerações estão sem referências do que é ser adolescente e ficando cada vez mais refém das redes sociais.

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e todas as formas como meu trabalho já foi descrito, uma me pegou de surpresa: “musa teen”. Fiquei intrigada, afinal, tenho 28 anos, e todas as músicas do meu EP, “Favorito”, foram compostas depois dos meus 25. Essa descrição me fez questionar se, sem querer, eu estava me encaixando em um lugar mais infantilizado. A dúvida me acompanhou por semanas.
Até que, me deparei com o inesperado retorno do filme da Hannah Montana pela rede UCI. Revisitar a pré-adolescência no cinema me trouxe uma pergunta: será que essa percepção de “cantora teen” não reflete uma ausência muito maior em nosso cenário cultural: a falta de uma “Hannah Montana” para as novas gerações?
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que criança é quem tem até 12 anos incompletos, e adolescente, de 12 a 18 anos. E, na minha adolescência, a oferta de conteúdo era vasta. Crescemos com Lizzie McGuire, Hannah Montana, Cheetah Girls, desenhos como Jovens Titãs e Kim Possible, e High School Musical. Era quase uma religião.
A TV aberta dedicava horários a esse público, com a saudosa TV Globinho e novelas como Rebeldes e Malhação. As bancas de jornais eram aventuras que comunicavam com nossa transição: líamos quadrinhos da Turma da Mônica até chegar nas revistas como CAPRICHO e TodaTeen, repletas de ídolos e informações para ajudar nesse amadurecimento.
As experiências não se limitavam ao digital. Íamos a parquinhos, brincávamos de pular elástico, frequentávamos Lan Houses – consegue imaginar um mundo em que era preciso sair de casa para acessar a internet? Essas atividades, que exigiam interação física, permitiam outro tipo de troca. Não é saudosismo, mas uma reflexão sobre o impacto dessas vivências e o que a ausência delas representa para a compreensão do mundo.
A pandemia trouxe o isolamento social e a vida se transformou radicalmente após esse período. Não é somente uma mudança geracional e a inclusão de novas tecnologias, mas sim na forma como se consome mídia e se compartilham experiências.
Uma consequência direta foi o enfraquecimento do mercado de entretenimento voltado para a adolescência. Embora ainda existam séries, filmes e desenhos para esse público, muitas vezes estão “escondidos” nos catálogos dos streamings. A TV a cabo teve sua função absorvida pelos smartphones e aplicativos. E se antes as crianças podiam ligar a TV e encontrar conteúdo feito para elas, hoje a dinâmica é outra.
Essas atividades, que exigiam interação física, permitiam outro tipo de troca. Não é saudosismo, mas uma reflexão sobre o impacto dessas vivências e o que a ausência delas representa para a compreensão do mundo.
Os canais infantis cederam espaço para o YouTube, TikTok e Instagram, como mostra o levantamento TIC Kids Online Brasil 2024. Os dados apontam que 93% da população entre 9 e 17 anos já é usuária da internet e 83% das crianças e adolescentes nessa faixa etária, que utilizam a internet, já possuem perfis nessas e em outras plataformas digitais. O algoritmo se encarrega de entregar conteúdo personalizado: quanto mais a galera engaja com temas específicos, mais material é oferecido, e mais restritas se tornam as referências.
Mas como isso afeta o meu trabalho como cantora? A chave para entender isso está na falsa equivalência entre maturidade e sexualidade. A expressão da sexualidade é entendida, de forma quase universal, como um marcador do fim da infância. É uma divisora de etapas que separa as nossas vidas entre inocência e malícia.
Na minha infância, ser exposta a referências de adolescência antes da vida adulta permitiu que eu desenvolvesse a capacidade de sonhar com o meu futuro e seguir meu próprio compasso moral — sim, assistir Hannah Montana me fez uma pessoa melhor.
Hoje, crianças e adolescentes engajam cada vez mais com material pensado para adultos. Apesar de ainda existirem canais infantis, os criadores acabam priorizando temas mais adultos, porque, afinal, estar no YouTube agora é muito menos sobre se expressar e mais sobre fazer uma carreira.
Esse conteúdo acaba por transformar influenciadores no que a ficção foi para a minha geração: uma referência de vida. Com isso, crianças não sonham mais em ser adolescentes, vivem uma maturidade adiantada e, assim, os marcadores dessa transição se tornam obsoletos, restando apenas a sexualidade para estabelecer essa divisão.
Quando comecei a desenvolver o meu EP, tinha algo muito claro em mente: não queria escrever sobre sexo. É uma parte importante da vida adulta, e o desejo é tema de grandes discos da música brasileira, explorados explicitamente no cenário atual. Contudo, para mim, naquele momento, esse assunto não trazia inspiração. Buscava explorar outras sensações e sentimentos, e, sendo sincera, tenho dificuldade com palavrões nas letras — apesar de, como boa carioca, eles fazerem parte do meu dia a dia — e nunca me senti bem expondo muito do meu corpo.
Essa combinação compõe o que me trouxe a classificação de “musa teen”. Acredito que a falta de sexualidade explícita acaba funcionando como um direcionador do meu público, pois, apesar de minhas letras abordarem vivências pós-adolescência, a referência principal se torna como me expresso em meu trabalho. Bem, não pretendo mudar como me visto ou o assunto das minhas composições. Acredito que o que tenho a dizer com a minha obra precisa ser ouvido por outras pessoas que também sentem o mesmo.
A verdade é que não temos mais uma Hannah Montana e com isso perdemos marcações culturais do que é infância e adolescência. Logo, tudo que não é explicitamente adulto automaticamente se torna infantil aos olhos do público e do mercado. Não imaginei que minhas canções ocupariam esse espaço do público jovem, mas me alegra poder ser ouvida por eles, afinal sentimentos são universais e espero que quem me escute consiga se identificar com eles.