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Grupo de mulheres luta contra machismo na vela e sonha com a Cape2Rio 2023

A bordo do projeto Criloa, coletivo quer revolucionar o meio náutico e formar a primeira equipe brasileira 100% feminina a atravessar o Atlântico

Por Isabella Otto Atualizado em 30 out 2024, 17h27 - Publicado em 19 jun 2021, 10h03
Ao centro, modelo usa cropped azul de manga comprida. Ela está com uma das mãos na cintura, sorrindo. De um lado, a frase
Marisa/Divulgação

“Onde eu jogo a minha ancora é onde eu moro”. É assim que Carina Joana define sua vida à bordo de um barco. E não de qualquer um! Há pouco mais de quatro anos, sua casa é o Criloa, construído na Itália em 1973 e que, três anos mais tarde, em 1976, tripulado exclusivamente por mulheres, participou da Cape2Rio, uma competição de 3.600 milhas marítimas que sai do Rio de Janeiro rumo à África do Sul. “Essa travessia é um desafio náutico bem relevante, no sentido de dificuldade. Nós não somos atletas da náutica, nós somos mulheres que decidiram fazer isso e vamos fazer! Nós vamos atravessar o oceano. Mas não é uma viagem fácil”, conta a comandante, de 38 anos.

Hoje, além da casa da Carina, a embarcação é a morada do projeto Voa Criloa, um coletivo de mulheres que deseja tornar o espaço náutico, constituído majoritariamente por homens, menos machista. “A vela é um meio bastante masculinizado. São poucos os nomes de mulheres que despontam, justamente pela falta de representatividade. Na maioria das regatas que fazemos, nosso barco é o único com uma equipe 100% feminina e isso é um choque“, expõe Marina Bidoia, de 22 anos, formanda em arquitetura. Ela é a caçula da equipe com nomes de diferentes idades e vivências. “Nós somos um grupo de mulheres fazendo coisas juntas, pensando coisas juntas e vencendo desafios juntas”, completa Carina.

Mulheres em um barco a vela, posando para a foto em um lindo fim de tarde
Da esquerda para a direita: Maritza Oliveira, Alice Arida, Carina Joana, Thais Viyuela, Marina Bidoia e Andrea Oliveira. A cachorrinha se chama Dora! Acervo Criloa/Divulgação

Andrea Vieira, de 31 anos, é advogada e mora a bordo do Baco há algum tempo. É nele que a jovem vive, trabalha, existe e luta. “O mar sempre foi um ambiente masculino, desde as expedições. São histórias masculinas. A mulher significava má sorte e até hoje ouvimos isso. Se uma mulher fosse na viagem, era só para cozinhar, e isso quando ia! Esse trabalho que envolve perigo e habilidade era do homem. As mulheres não eram vistas com as mesmas habilidades que eles. O mar é muito uma provação de virilidade, de força, de equilíbrio”, relata. Na década de 70, o cenário começou a mudar, como explica a bióloga Maritza Oliveira, de 54 anos, que também faz parte do Criloa. A habitante do veleiro SaraCura conta que foi nessa época que começou uma movimentação maior de mulheres querendo ocupar o mar.

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Antigamente, talvez por falta de equipamentos mais tecnológicos, um corpo mais musculoso se fizesse necessário em alto mar, como acredita Carina. Hoje, contudo, há equipamentos que facilitam a vida a bordo. “Sem contar que a força do vento na vela, por exemplo, é algo sobre-humano. Então, essa relação da pessoa com essa força acontece através justamente de instrumentos”, explica a comandante. Marina garante que o negócio é mais jeito do que força: “Você só precisa aprender a usar o seu corpo”.

COMO É MORAR EM UM BARCO?

Apertado. Talvez menos confortável do que morar em uma casa em terra firme, com um grande banheiro e uma cozinha estruturada. Mas é acolhedor. Além disso, o projeto não é sobre morar em um barco, mas sobre existir nesse ambiente náutico e em qualquer outro que a mulher desejar. “A gente quer mostrar as possibilidades do uso de um barco e criar um espaço de mulheres à bordo. A gente se movimenta pra fora do barco para pegar água, ir ao mercado, resolver problemas, trabalhar… O que diferencia é que a gente também se movimenta com o barco. Quando eu estou em Paraty, minha casa é Paraty. Quando o barco está em Ubatuba, minha casa é Ubatuba“, esclarece a comandante Carina, que explica ainda que o Voa Criloa não é também apenas sobre regatas: “O projeto fala de velejar. Ponto. Regatas são um lugar para fazermos isso, um lugar mais otimizado, técnico e objetivo, mas o projeto vai além. A ideia é mostrar que este barco existe, que a gente pode estar em competições e que a gente pode estar no mar“.

Imagem de um barco a vela chamado Criloa. Ele está em alto mar e passarinhos voam perto dele.
O Criloa em alto mar, com sua tripulação 100% brasileira e feminina  Aline Bassi/Balaio/Divulgação
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Marina sabiamente destaca o fato de que nem todas as pessoas têm um barco ou condições de comprar um. Logo, tripular uma regata é dar oportunidades para essas pessoas. Em especial para as mulheres, que não precisam estar a bordo somente para cozinhar ou porque são esposas ou filhas dos tripulantes. “Quando alguém decide entrar no mundo náutico da vela, é muito comum que a via única seja entrar num barco, fazer uma função específica e desenvolvê-la. Às vezes, sem nem saber o porquê. Para muitas de nós, isso é algo que não faz sentido. Nós somos um projeto que acolhe todas as mulheres, de diversas idades e histórias, iniciantes ou avançadas, que querem navegar num espaço confortável, de aprendizado e acolhimento“, afirma Andrea. “A Carina é uma comandante muito especial, porque ela explica o todo. Já velejei em muito barco, formado majoritariamente por homens, que eu fazia uma função sem nem saber o que estava fazendo, porque ninguém explicava nada“, lamenta Marina.

Mariza conta que, em determinada situação, escutou algumas mulheres dizendo que todo mundo se xinga e grita durante as competições, mas que no fim todo mundo é amigo. Entretanto, as coisas, segundo ela, não precisam ser assim. “A gente não precisa aceitar. Porque o mundo no mar é pesadinho mesmo”, confessa. Marina Bidoia acredita que esse ambiente mais hostil é algo que também “filtra” as mulheres e contribui para a falta de representatividade feminina na vela. “Tem que transbordar o ir e voltar”, garante a comandante.

RUMO À CAPE2RIO 2023

O Voa Criloa é um coletivo que une diversas mulheres e está em construção, mas nem todas que hoje fazem parte dele vão correr a travessia Cape2Rio. Por enquanto, são três nomes confirmados: o da capitã Carina Joana, e os das tripulantes Marina Bidoia e Alice Arida, de 33 anos, que vai documentar todo o projeto, desde a preparação até a travessia, que deve durar cerca de um mês. “Esta tripulação está em formação, então estamos entendendo a função que cada uma vai assumir. O ideal é que todas entendam o funcionamento geral do barco e que tenha definido sua responsabilidade principal”, afirma a comandante, que garante que a preocupação com comida nesse período sem ver terra é o de menos: “Como que a gente leva água?! Porque é água pra beber, pra usar no barco, pra tomar banho… Água pra um mês!”, preocupa-se.

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Medalha da competição Cape2Rio e barco tripulado por mulheres italianas, nos anos 70
Medalha da participação na Cape2Rio nos anos 70, que se encontra no barco que foi comprado por Carina Joana, e tripulação original, formada pelas italianas Patrizia, Ida, Brigitte, Zara, Donatella e Christina Richard Crockett/Divulgação

Além de já virem estudando há um tempo, o Criloa conta com uma equipe de profissionais que está fazendo esses levantamentos e mapeamentos para que a Cape2Rio seja um sucesso! “O barco vai fazer 50 anos em 2023. Ou seja, a gente quer comemorar essa história, esse marco, esse símbolo. Eu não quero saber quem eu vou ser depois da travessia; eu quero saber quem a vela vai ser!“, empolga-se Marina, a mais jovem tripulante a bordo, mas a com mais experiência em competições. “Às vezes, eu nem falo pra minha mãe que estou fazendo uma travessia, porque eu sei que ela fica nervosa, e ela tem problema de pressão alta”, confessa Alice.

Além da conta no Instagram, a @voa_criloa, o coletivo lançou recentemente uma vaquinha online para arrecadar dinheiro para que o sonho da travessia se torne realidade. Afinal, além de muito planejamento, é preciso de dinheiro para colocá-lo em prática – e um patrocínio, que seria muito bem-vindo, ainda não rolou. Com a arrecadação, apoia-se transporte, hospedagem, alimentação, horas de trabalho, impostos e um fundo de reserva. “Nós, mulheres Criloa, vamos atravessar duas vezes o Oceano Atlântico movidas pelo vento para inspirar outras mulheres a seguirem seus sonhos, por mais grandiosos e distantes que eles possam parecer. Com compromisso, técnica, foco e uma equipe engajada, faremos do nosso sonho uma travessia não só possível, mas extraordinária”, conta o coletivo no objetivo do financiamento, que você pode ajudar acessando o site Apoia.se.

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Um barco a vela visto de cima
O Criloa visto de cima, ancorado no porto Acervo Criloa/Divulgação

Tripular em inglês é ‘to man a boat’, ou seja ‘colocar os homens no barco’. Então, dá pra entender como o machismo nesse meio é enraizado“, pontua Marina, que tem a fala complementada pela das colegas, que vibraram quando, dia desses, cruzaram em uma ancoragem com uma garotinha que ficou encantada quando viu um barco cheinho de mulheres. “Olhar o brilho nos olhos dela, que visivelmente está inserida nesse ambiente, mas não está acostumada a ver um barco repleto e só com mulheres, foi engrandecedor. A gente cumpriu parte do nosso papel”, celebram a velejadoras, que garantem que a vida em alto mar é, sim, para todos – e aquela coisa de que apenas homens podem ser marinheiros, tripular barcos, ir pescar ou sair para navegar é história antiga de pescador. E como diz a comandante Carina Joana: “Sonhar em coletivo é urgente!”.

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