Brasil já teve acidente radioativo só 2 níveis abaixo ao de Chernobyl
Você sabe como aconteceu o maior acidente radioativo fora de uma instauração nuclear, apenas um ano após Chernobyl?
Nos últimos dias, o mundo inteiro está falando e lembrando de Chernobyl, o pior desastre nuclear da história da humanidade, que causou a morte de centenas de milhares de pessoas. Por outro lado, pouco se fala sobre um acidente radioativo que aconteceu apenas um ano após a tragédia soviética e que coloca o Brasil no mapa dos piores desastres radiológicos do mundo. Aliás, muitos brasileiros nem ao menos sabem que isso aconteceu. Você já ouviu falar sobre essa história?
O acidente aconteceu em setembro de 1987, em Goiânia. Dois catadores de lixo, Wagner Pereira e Roberto Alves, entraram em uma clínica hospitalar abandonada e encontraram uma máquina. Curiosos, eles desmontaram o objeto, retiraram a parte superior e a levaram para casa. Mal sabiam eles que a máquina era uma ferramenta de radioterapia usada para tratamentos contra o câncer. Por isso, ao abrir a caixa de chumbo, os homens encontraram um cilindro que continha 19 gramas de césio-137.
Para entender melhor os efeitos desse acidente, a CAPRICHO conversou a professora Emico Okuno, docente sênior do Departamento de Física Nuclear da Universidade de São Paulo (USP). “O césio-137 é um átomo radioativo que, ao se desintegrar, emite radiação beta e gama“, explica. Segundo ela, o contato com esse material pode ser fatal dependendo da dose de radiação a qual a pessoa está exposta.
Wagner e Roberto decidiram, enfim, vender o material para um ferro-velho. Em pouco tempo, contudo, os dois catadores de lixo começaram a sofrer com vômitos frequentes e sentir tontura e diarreia, mas acharam que eram efeitos de uma intoxicação alimentar.
Enquanto isso, Devair Ferreira, proprietário do ferro-velho, notou que o pó de césio-137 tinha um brilho azul que parecia uma pedra preciosa. Intrigado, ele decidiu levar o material para casa e a misteriosa cápsula passou a ser uma atração para a família e os vizinhos, principalmente após Devair distribuir o material. No dia 24 de setembro, Ivo Ferreira, o irmão de Devair, levou um pouco do pó brilhante para casa e colocou o material em cima da mesa durante uma refeição. Sua filha de seis anos, Leide das Neves Ferreira, tocou o material e depois comeu com a mão suja, ingerindo um pouco de césio-137.
Não demorou muito tempo para que as pessoas começassem a adoecer. Cerca de 12 delas foram diagnosticadas com os mesmos sintomas que os catadores de lixo: diarreia, vômitos, febre, tontura, queda de cabelo. Foi quando a esposa do dono do ferro-velho, Maria Gabriela Ferreira, desconfiou que o material azul brilhante podia estar por trás de tudo. Depois de embalar o cilindro em um saco plástico, a mulher o levou para um escritório de saúde do governo. Dias se passaram e os médicos começaram a desconfiar de um envenenamento geral por radiação.
Em entrevista à BBC News Brasil, o físico Walter Mendes Ferreira disse que pegou um detector de radiação para medir a radioatividade do material e, mesmo a uma distância de 80 metros, a ferramenta atingia o nível máximo. Ele fez, então, o alerta às autoridades e à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) para iniciar o processo de descontaminação.
De acordo com a professora Emico Okuno, a Agência Internacional de Energia Atômica desenvolveu a Escala Internacional de Eventos Nucleares para medir a gravidade de eventos em usinas nucleares, que são classificados de 1 a 7 em escala logarítmica, sendo que cada incremento significa um aumento de 10 vezes em gravidade. “O acidente de Goiânia, em 1987, foi classificado como sendo de nível 5. O acidente com o reator nuclear de Chernobyl, em 1986, e os de Fukushima, em 2011, foram classificados como sendo de nível 7“, diz.
Em Goiânia, um pânico se instaurou após a confirmação da radioatividade. Centenas de pessoas com níveis leves de contaminação ficaram em abrigos especiais, dezenas de casas e o ferro-velho foram demolidos. Até mesmo objetos, veículos e árvores tiveram que ser descartados como lixo nuclear. Leide das Neves Ferreira, a menina de 6 anos que brincou e chegou a engolir o pó brilhante, foi a primeira a morrer, um mês depois. Sua tia, Maria Gabriela Ferreira, também faleceu na mesma época. Dois homens que trabalhavam no ferro-velho também morreram.
Para a surpresa de muitas pessoas, os catadores de lixo que abriram a máquina e encontraram o material sobreviveram. Para Okuno, isso depende da dose de radiação que a pessoa recebe. “Existe o que é chamado dose letal que é de 4 grays, que quem a recebe tem 50% de probabilidade de morrer dentro de 30 dias. Algumas pessoas podem ser mais resistentes que outros, pois esse valor é uma média”, ela explica.
Cinco pessoas que eram ligadas à clínica que abandonou o material radioativo foram condenadas a três anos e dois meses de prisão, mas a pena foi reduzida a serviços comunitários mais tarde. Até hoje, pessoas que foram contaminadas pela radiação recebem atendimento para seguir com o tratamento. Segundo a professora Emico, mesmo que a pessoa tenha sido totalmente descontaminada, o mal causado pela radiação fica nas células que sobreviveram e podem continuar se multiplicando, o que também pode causar a origem de um câncer anos depois – assim como milhares de pessoas em Chernobyl tiveram.