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Amores líquidos vão perder espaço no mundo pós-pandemia de coronavírus

A liquidez dos relacionamentos e a ilusão que eles criam sobre liberdade: "a nova forma de se relacionar deve ressignificar o toque, os beijos e os abraços"

Por Isabella Otto Atualizado em 14 jun 2020, 10h11 - Publicado em 14 jun 2020, 10h10
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CAPRICHO/Divulgação

Quão difícil é imaginar como será a vida quando a quarentena oficialmente acabar? Por mais que alguns países já estejam retomando suas atividades, abrindo fronteiras e afrouxando medidas de isolamento e proteção, paira ainda uma enorme incerteza no ar. Se alguns estão ansiosos para sair na rua, ir pra balada e comer em um restaurante, outros acreditam que não conseguirão retomar de início tais atividades por medo. E se os solteiros fizeram a festa no carnaval, tempo em que a liberdade é tão supervalorizada, na quarentena os casais foram aqueles que passaram a ser invejados, ou porque estavam quarentenando juntos ou porque tiveram em quem se apoiar à distância. Se ainda não deu para perceber, dentre as muitas ressignificações trazidas pela pandemia de COVID-19, uma delas é a certeza de que a forma como enxergamos os relacionamentos mudou e vai continuar mudando.

Burak Karademir/Getty Images

O que é ser livre, afinal de contas, em uma realidade em que ficar em casa talvez seja o maior ato de liberdade que alguém possa ter? Do que adianta a liberdade proporcionada pela vida de solteiro se você não pode usufruir dela? Seria uma ilusão? Ou estaria a gente pirando por causa da carência gerada pelo confinamento? A Vanessa Bizzo Lobo, professora de psicologia da São Judas, explica que cada pessoa lidou e segue lidando com o distanciamento social da sua maneira, e encarando situações inesperadas dentro de suas possibilidades. “Alguns conflitos que antes existiam foram acentuados, outros foram diluídos. A quarentena fez com que que as pessoas estabelecessem outra relação com o consumo, com seus bens e com seu status, fazendo com que essas coisas se tonassem absolutamente secundárias quando comparadas às relação com quem amamos e com nossa própria vida. Quem não entendeu isso, na verdade, não entendeu nada, e, de fato, não mudou em nada. Continuou seguindo sua vidinha alheio a tudo que estava acontecendo e sem se importar consigo mesmo ou com os outros. O que esperar dessa pessoa em termos de mudança? Nada”, esclarece a especialista.

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Que as relações humanas foram transformadas, disso não há dúvidas, mas será que a pandemia vai trazer consequências a longo prazo na forma como os seres humanos encaram os relacionamentos e até então valorizavam os amores líquidos? “O sociólogo Zygmunt Bauman, muito antes da quarentena, já havia identificado um tipo de relação social que anteriormente era pautada em uma responsabilidade mútua entre as partes que se relacionam e havia sido trocada por outro tipo de relação, que o autor chama da conexão. A característica dessa relação está na facilidade de esquecer o outro, de se desconectar. A conclusão de seus estudos é muito atual: a de que vivemos em um mundo de incertezas, extrema insegurança nas relações e tempos de relações sociais frágeis“, conta a psicóloga. Para a Dra. Vanessa, ocorreu ainda uma pressão social já destacada por Bauman que, em meio aos caos, foi positiva: “Ela forçou as pessoas a escolherem um lado onde só se havia duas opções: seguir as regras da quarentena ou negar a realidade. Os que seguiram as regras da quarentena fizeram a escolha que iria envolver a mudança no próprio comportamento e impactar na responsabilidade pelo adoecimento e vida do outro. As pessoas ativas no processo certamente tiveram a condição especial de se sentirem importantes, únicas, especiais, sendo dignas de dar e receber muito amor.”

 

Outra questão que pode desmitificar as crenças de que amores líquidos podem ser positivos, pois dão mais liberdade às pessoas e evitam que elas se envolvam mais intensamente, poupando o coração de ser quebrados mais vezes durante a vida, é a de achar que um relacionamento significa o fim de uma liberdade. Isso não é só errado como problemático. Faz parecer que relacionamentos são pautados em cima da possessividade, quando, na realidade, devem ser pautados em cima da confiança, que dá liberdade e não acaba com ela. “Os laços devem se tornar mais fortes pós-pandemia, porque quem viveu esse período intensamente não desejará mais buscar alguém para suprir suas carências ou tampar seu vazio existencial, mas porque efetivamente percebeu o poder de sua responsabilidade e a importância de um código formal a seguir, que exige muito respeito com a condição humana, e que o amor é fruto de esforço, entrega e recebimento. Dificilmente essas pessoas vão aceitar se relacionar com os descompromissados”, alerta Vanessa, que acredita ainda que a busca por uma companhia fixa deve se tornar uma tendência ainda maior depois da quarentena: “Ficar solteiro com aquela perspectiva de que o outro atrapalha minha condição de conhecer várias pessoas pode não ser a melhor estratégia para o momento. Muitos perceberam que ter uma pessoa para conviver, para dividir as experiências, para ouvir e para falar é muito mais confortável para o ego. É possível que as pessoas tenham aprendido que ter um companheiro pode agregar no seu projeto de felicidade. Muitos solteiros viram que os casais ficaram melhores na quarentena porque puderam estreitar seus laços, realizando atividades juntos o que fortaleceu a intimidade sem com isso interferir no respeito à privacidade”.

Amores líquidos tendem a ser rasos pois justamente não permitem ser pautados em cima de questões profundas. É o que acontece tantas vezes nas redes sociais: a aparência conta mais do que quem a pessoa é por dentro e quais valores ela defende. A constante necessidade das pessoas estarem sempre se submetendo a procedimentos estéticos também reflete nessa falta de profundidade. O medo de se envolver, a insegurança de ter o coração partido e a valorização tantas vezes ilusória de uma vida de solteiro romantizada também contribuem para a consistência dos amores líquidos. Nada é feito para durar, mas o isolamento está durando e fazendo muita gente rever o que é tratado como prioridade em suas vidas. “A nova forma de se relacionar deve ressignificar o toque, os beijos e os abraços. Não para que fiquem esquecidos ou condenados, mas para que sejam bem escolhidos. Vai ser melhor beijar ou tocar em alguém em que ambos aceitem essa troca sabendo o que isso significa. É possível que se valorize mais a boa comunicação, a troca de olhares e a realização de atividades do tipo: dançar, brincar, interagir e se conhecer mais. Será uma geração moldada na restrição dos contatos interpessoais e da valorização das relações familiares mais afetuosas e respeitosas. Além disso, os casais que sobreviverem à quarentena fortalecerão sua intimidade. Se houve no namoro ou casamento a possibilidade de proximidade, de cumplicidade, de respeito e paciência mútuos, certamente esse casal sabe que o que esperar da vida em comum, que nada mais é do que o equilíbrio entre ficar bem consigo mesmo e com o outro“, finaliza a psicóloga.

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