A voz dos homens poderosos e ricos contra o anonimato dos “interesseiros”
Uma reflexão sobre como é relativamente fácil homens ricos, poderosos e famosos serem os vulneráveis da história, e por que fazemos isso.
No Brasil, apenas 10% dos estupros são denunciados. Os dados do Atlas da Violência do Ipea de 2018 também mostram que medo e vergonha são os principais motivos que levam as mulheres a pensar duas, três, dez vezes antes de registrarem um boletim de ocorrência. Os julgamentos da sociedade, levando em conta que ainda temos opiniões e conceitos muito baseados no que o patriarcado diz que é certo ou errado, faz com que a realidade seja muito cruel para a maioria das vítimas. É por isso que parece estranho pensar que uma mulher se submeteria a tudo isso sem que algo realmente tenha acontecido. Desencoraja pensar que lutas e todo um movimento pode ser desvalidado por casos do tipo, mas também desencoraja ver como narrativas machistas permeiam nosso mundo sem que, às vezes, nem notemos o que está rolando.
Esse quadro se torna ainda mais questionável quando, sob os holofotes, temos homens poderosos, ricos e famosos. Os acontecimentos abaixo não são pontos de vista isolados ou exceções. Com eles também não queremos proteger ou incriminar ninguém sobre as recentes notícias que estão circulando na mídia – e você sabe sobre o que estamos falando. Levantamos esses fatos para estimular a reflexão e fazer você pensar sobre como o imaginário coletivo tende a nos fazer proteger, mesmo que inconscientemente, o lado que detém o poder, não o que acusa o poderoso. Quando tem dinheiro, futebol e mulher no meio, a narrativa só tende a se tornar ainda mais sexista, em que o termo “maria-chuteira” é o menor dos problemas.
1. O Caso Eliza Samúdio
Muitas pessoas, em sua maioria homens, estão relacionando o Caso Neymar ao de Eliza Samúdio, e ainda fazendo “piada” sobre ambos. O meme do momento diz que a moça que registrou um boletim de ocorrência contra Neymar, acusando o atacante de tê-la estuprado, fez tudo o que fez porque o jogador não é o goleiro Bruno. Do contrário, seria bem diferente…
Em 2010, Eliza Samúdio foi morta aos 25 anos de idade por Bruno Fernandes de Souza, até então goleiro do Flamengo. O inquérito só foi concluído em 2013, quando o atleta foi condenado por homicídio, sequestro, cárcere privado, ocultação de cadáver, formação de quadrilha e corrupção de menores. A pena ultrapassaria os 20 anos de prisão, mas, em 2018, Bruno já cumpria regime semiaberto. Ele, porém, voltou a ser preso em 2019 após infringir uma das regras impostas pela polícia. No período em que ficou fora da prisão, o jogador chegou a ser contratado por um time de futebol.
Durante as investigações, em 2010, na cidade de Ribeirão das Neves, onde nasceu, Bruno recebeu o apoio de fãs na porta do fórum onde aconteceria uma audiência e foi recebido como herói. “Nosso eterno ídolo”, “estamos com você” e “injustiçado” eram o que diziam os principais cartazes naquele dia. Alguns ainda chacoalhavam orgulhosamente no ar camisas do Mengão.
2. O Caso Cristiano Ronaldo
Em 2018, um dos melhores jogadores (ou seria o melhor?) do mundo foi acusado de estupro por uma moça que se encontrou com ele em 2009, em um hotel em Las Vegas. O caso ainda é bastante abafado e não precisamos nem dizer que muita gente usou o fato de a vítima em questão ter prestado uma denúncia quase dez anos após o suposto crime ter ocorrido para tentar provar da inocência do atleta.
Um documento divulgado pela imprensa atesta que Ronaldo teria admitido que a modelo que o acusa realmente disse que não queria transar na ocasião. Apesar de especulações sobre uma possível retirada da denúncia da Justiça, a advogada que representa a moça afirmou na última quinta-feira, 6, que a acusação foi mantida e segue sendo analisada pela polícia.
O ídolo mundial, atacante da Seleção Portuguesa e da Juventus, segue sendo genial nos gramados. Isso é incontestável. É incontestável também que ele ofereceu quase R$ 1 milhão para silenciar a vítima, depois de ter pedido desculpas pelo que supostamente ocorreu.
3. O Caso Neverland
O mesmo julgamento que as mulheres que acusam Neymar Jr. e Cristiano Ronaldo estão tendo, o de que demoraram muito para prestar uma denúncia, receberam Wade Robson e James Safechuck, que acusam Michael Jackson de abusar sexualmente de crianças, quando o documentário Leaving Neverland, produzido pela HBO, foi lançado.
Como o lançamento aconteceu no mesmo ano em que a morte do Rei do Pop completa uma década, os americanos foram previamente chamados de interesseiros. “Por que só agora?” e “é muito coincidência, né? Devem estar precisando de grana” foram alguns comentários que apareceram na internet. Algumas pessoas mudaram de opinião após assistirem ao documentário. Outras, seguem defendendo o ídolo com unhas e dentes, apesar das muitas provas apresentadas pelo filme. Há inclusive quem defenda que não deveriam mais mexer nesse assunto, afinal o Michael já morreu, que o deixem descansar em paz, sabe? Mas e os que se dizem vítimas do músico? Não estão eles vivos?
As vítimas, Robson e Safechuck, e suas respectivas famílias confessam que foram ludibriadas pela fama de Michael. Jatinhos, viagens pagas, carros de luxo, fama por tabela… Como Michael, esse homem tão generoso, faria algo de ruim com meninos indefesos?! E como dizer que ele não tinha consciência dos atos, porque devia ter problemas psicológicos causados por traumas familiares, quando há ligações do cantor chantageando as vítimas e explicando como deveriam agir e o que deveriam fazer para não levantar suspeitas ou dar vestígios do que acontecia entre quatro paredes?
Talvez, de todo este levantamento, o Caso Neverland seja o que mais nos faça refletir sobre como homens poderosos podem não só usar a fama para fazer algo que lhes convém, mesmo que esse algo possa ser classificado como crime, como também essa fama pode convencer milhares de pessoas mundo afora que realmente conhecem a essência de um alguém com quem nunca conviveram – ou com quem conviveram minimamente. Não há futebol nem mulheres diretamente envolvidas, mas há muita grana e poder em jogo.
4. O Caso Ed Westwick
“Se o Ed Westwick quisesse me estuprar, eu deixaria”. Esse comentário foi feito em tom de brincadeira por muitas mulheres nas redes sociais em 2017, quando, em um intervalo de tempo muito curto, o ator foi acusado de estupro por três mulheres – que, tantos defenderam na época, “já eram grandinhas o bastante para saber onde estavam se metendo”. Em julho de 2018, a Justiça decidiu não indiciá-lo por falta de provas. Desdobramentos à parte, o caso é um típico exemplo de como a narrativa machista pode partir de próprias pessoas do sexo feminino – ainda mais quando o acusado em questão é bonito e charmoso. Se vítimas são chamadas de interesseiras por tantos homens, as próprias mulheres que fazem comentários do tipo reforçam esse estereótipo. Se você dá a entender que deixaria ser estuprada por um cara só porque ele é gostoso, rico, famoso e/ou seu ídolo, (1) você, definitivamente, não sabe o que é ser agredida sexualmente, (2) você contribui com a cultura do estupro, (3) você também desvalida lutas e movimentos, e (4) você dá margem para que narrativas sexistas continuem sendo reproduzidas naturalmente e dominem cenários que envolvam temas como violência contra a mulher e feminicídio.
Esses são apenas alguns exemplos que nos fazem refletir – e refletir é bom demais! Perceber que hás muitos pesos e medidas com as “vozes” que estão envolvidas em casos de crimes contra a mulher e abuso sexual não é “problematizar” ou “militar”. Tá, talvez até seja. Mas, mais do que isso, é perceber como esse jogo de poder e essas narrativas machistas estão interligadas, e que vítimas reais podem ser rotuladas como “interesseiras” simplesmente porque o primeiro julgamento do senso comum é transformar ricos, poderosos e famosos nos vulneráveis da história – porque, justamente, são ricos, poderosos e famosos. E homens. Mulher? Ah! Mulher é tudo “maria-alguma-coisa” mesmo…