Sim, eu sou preta todo dia.
"Todo ano eu celebro com um sorriso no rosto e um pente garfo na cabeça, coisas que viraram minha marca registrada"
u era feia quando eu era adolescente. Não tenho vergonha de falar isso, eu era bem prejudicada. Mas não me entenda mal, eu não sou feiofóbica. O meu conceito de feiura está intrinsecamente ligado à minha autoestima. Então, quando ela estava baixa, eu me sentia feia. E quando ela estava lá em cima, coisa que começou a ser mais e mais frequente, eu me sentia linda.
Eu não tive o meu glow up até os 25 anos. E mesmo depois dos 25, apesar de eu ter melhorado muuuuuuuuito, eu ainda não tinha me tornado a deusa esbelta e estilosa que eu sou hoje. E boa parte dessa melhora eu devo à minha stylist. Sim, eu tenho uma stylist. E sem ela eu com certeza voltaria a ser “feia”.
Trazer a Moda como parte da minha rotina me fez muito bem. Até os meus 28 anos, três anos depois do meu glow up, eu não sabia me vestir. E eu não sabia me vestir porque eu não tinha dinheiro para me vestir do jeito que eu queria. Todas as minhas roupas haviam vindo de doações e, apesar da minha gratidão a todas as pessoas que doaram, nada combinava com nada. Até, novamente, a minha stylist aparecer na minha vida.
A minha primeira consulta com a Ju foi quase mágica, ela me fez olhar e experimentar cada peça de roupa do meu guarda-roupa e daí veio o veredito dela: “Eu tenho clientes que dizem que não tem o que vestir, mas você realmente não tem o que vestir.” Eu ri. De fato, nada cabia ou ficava bom em mim. Eu tinha até um vestido amarelo-girassol! E se você já viu uma foto minha, você sabe que eu nunca combinaria com um vestido amarelo-girassol. Então, eu e a Ju começamos a bater perna por diversas lojas até achar coisas que, além de caber em mim, me fizessem sentir bem. Eventualmente nós achamos essas coisas e montamos um guarda-roupa inteligente onde tudo combinava com tudo. E isso ajudou um monte com a minha autoestima… Até eu cansar dessas roupas.
Apesar de bonitas e de terem um bom caimento, as roupas não refletiam quem eu era em toda a minha integralidade. Mas havia algo faltando. E demorou um tempo pra eu descobrir. Daí eu ganhei o meu primeiro pente garfo. Usá-lo para garfar o cabelo foi incrível, me mostrou outra forma de expressão e, mais importante do que isso, me mostrou outra forma de expressar a minha negritude.
Daí eu ganhei o meu primeiro pente garfo. Usá-lo para garfar o cabelo foi incrível, me mostrou outra forma de expressão e, mais importante do que isso, me mostrou outra forma de expressar a minha negritude.
Gautier Lee
Mas Gautier, tudo pra você é sobre ser preta? Sim, eu sou preta todo dia. Aos poucos esse um pente garfo foi virando dois que foram virando três até a minha coleção chegar em onze pentes com cores, formatos e tamanhos diferentes. Um deles, inclusive, é da Pequena Sereia e tem glitter. E, não, eu não vou dar ele pra uma criança porque eu sou apegada (ou egoísta) demais pra isso.
Além disso, fazer a minha mastectomia dupla como parte do meu processo de afirmação de gênero enquanto uma pessoa trans também me ajudou a ter uma autoestima melhor e, consequentemente, encontrar roupas que me servissem. Afinal todas elas tinham espaço para seios e isso não era mais a minha realidade. Porra, Gautier, não basta ficar falando sobre ser preta, você também tem que falar sobre ser trans? De novo: eu sou trans todo dia.
Eu não consigo separar essas duas partes da minha identidade. É impossível. Tanto que o Dia da Consciência Negra e o Dia da Memória Trans caem na mesma data: 20 de novembro. E todo ano eu celebro com um sorriso no rosto e um pente garfo na cabeça, coisas que viraram minha marca registrada entre família, amigos e colegas de trabalho. O pente virou uma marca pessoal, uma forma de ter a minha negritude reconhecida a metros de distância. E isso só prova o quanto a Moda é importante para a nossa construção enquanto indivíduos e hoje eu amo o jeito como eu sou construída. E você? Tá se amando também?