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Projeto de abstinência sexual para jovens é plano de governo para 2020

Por que a política pública da abstinência sexual, a grande "revolução" em construção da ministra da Mulher Damares Alves, é óbvia e rasa.

Por Isabella Otto Atualizado em 22 jan 2020, 11h37 - Publicado em 22 jan 2020, 10h56

Dentre os projetos de governo para este ano, temos um em construção que faz parte da campanha de prevenção à gravidez precoce conhecido como a política pública da abstinência sexual, reconhecida novamente neste mês de janeiro por Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Gazeta do Povo/Reprodução

Além da Secretaria Nacional da Juventude e da Secretaria Nacional da Criança e do Adolescente, que estão a par do projeto de governo, conforme declarou Damares em uma entrevista concedida para a Gazeta do Povo em dezembro de 2019, o pastor Nelson Neto Júnero, criador do movimento “Eu Escolhi Esperar”, que incentiva jovens a fazerem sexo apenas depois do casamento, também está por trás da campanha, já tendo sido um nome presente, pelo menos duas vezes, na pasta ministerial de Brasília, segundo informações d’O Globo.

Mas como seria essa tal política da abstinência sexual? De acordo com a ministra, a política pública para a juventude “vai fazer uma revolução” ao mostrar que “não ficar não é careta”. Damares afirmou que muitos jovens hoje só têm relações sexuais por pressão social. Além disso, “por muitos anos, o tempo todo, o Brasil só ofereceu para os jovens alguns métodos de prevenção contra a gravidez, como a camisinha(…) Mas tem um método muito eficaz, que é a abstinência ou retardamento da relação sexual“, disse também em entrevista à Gazeta do Povo.

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, diante de toda a polêmica causada pela campanha em construção, fez questão de salientar que, apesar de Damares Alves deixar claro que a abstinência sexual é o método contraceptivo mais seguro de todos, campanhas em prol do uso de preservativos e a própria distribuição gratuita deles não serão medidas cessadas, assim como o ministério continuará incentivando debates sobre outros métodos contraceptivos.

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Para a ministra da Mulher, o projeto governamental vai “trazer para a relação [do casal] temas como sexo e afeto”. Ela também comemorou a iniciativa com a seguinte fala: “a gente vai poder falar no Brasil sobre alma gêmea!”. Damares ainda incentivou a realização de um exercício para que as pessoas, principalmente as meninas, compreendam essa questão de alma gêmea que, segundo ela, existe, sim: “pega uma fita adesiva e cola no braço de uma adolescente. Faz uma roda. Manda ela tirar e colocar [a fita] no braço do outro e de outro. Daqui a pouco, na quarta ou sexta pessoa, a fita não gruda mais. Assim é nossa alma(…) Tem uma hora que a menina não cola com ninguém, sua alma não cola com ninguém”, disse, fazendo alusão ao fato de que garotas que inciam a vida sexual muito cedo têm menos chances de encontrar sua alma gêmea porque, depois de um tempo, suas respectivas almas perdem a cola e elas não “vão colar mais em ninguém”, deixando assim passarem a oportunidade de encontrar “a tampa da panela”.

É bastante óbvio e raso dizer que a abstinência sexual é a medida mais eficaz contra a gravidez. Contudo, parece um discurso que cabe muito mais a espaços religiosos que a um ministério, vide pesquisas realizadas nos últimos dez anos que mostram que os jovens estão começando a vida sexual cada vez mais cedo. A pesquisa Mosaico 2.0, coordenada por Carmita Abdo e realizada em 2017, por exemplo, mostra que os adolescentes começam a transar entre 13 e 17 anos. Outros levantamentos apontam uma relação do início da vida sexual “precoce” ao uso de bebidas alcoólicas, como mostra artigo publicado por estudantes da Universidade Católica de Pelotas, no Rio Grande do Sul, realizado entre os anos de 2007 e 2008, intitulado Fatores associados à idade da primeira relação sexual em jovens: estudo de base populacional.

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No Brasil, é importante ainda destacar, não vigora uma legislação que obrigue que as escolas dê conteúdos de educação sexual para os alunos, reforçando a máxima de que isso é algo que eles devem aprender em casa – mas sabemos que nem sempre é o que acontece, por diversas razões. Em 2007, um novo projeto de lei foi somado à Constituição, mas ele apenas incluiu ensino religioso à lista de não obrigatoriedades escolares, deixando a questão da educação sexual como já era anteriormente abordada no Artigo 33 da Lei nº 9.394, como é possível ver abaixo:

  • “Art. 2º As escolas de educação básica que ofertam educação sexual deverão exigir dos alunos interessados em cursá-la a autorização de seus pais ou representantes legais”;
  • “Parágrafo único. A matrícula em aulas de educação sexual deverá se facultativa e o rendimento obtido pelos alunos não poderá integrar o processo de avaliação de ensino-aprendizagem da série e nível em que se encontram”.

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o índice de gravidez precoce no Brasil fica acima da médica latino-americana. Isso, entretanto, não pode ficar desassociado ao fato de que o país ocupa a 4ª posição no ranking mundial de casamento infantil, de acordo com dados da Unicef. Falar em abstinência sexual diante de todos esses fatos é tratar a questão pública da gravidez precoce de uma maneira muito superficial, praticamente ignorando questões socioculturais e econômicas de um país com mais de 8 milhões de km² de extensão, e incentivando de certo modo o tabu que ainda existe em cima da educação sexual, do uso do preservativo, de métodos contraceptivos e do conhecimento do próprio corpo (principalmente do feminino).

Confira a seguir a entrevista completa que Damares Alves deu à Gazeta do Povo falando sobre o “método eficaz da abstinência sexual”. A abordagem dela sobre o projeto governamental começa nos 22’50”:

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