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‘Hoje completo oito meses limpa de qualquer tentativa de automutilação’

'Não me escondo': aos 19 anos, Isa já enfrentou muitas batalhas na guerra contra o Transtorno de Borderline e a automutilação. Seu depoimento salva vidas!

Por Isabella Andrade Atualizado em 2 fev 2019, 10h02 - Publicado em 2 fev 2019, 10h02

Sempre fui uma criança aparentemente saudável: era comunicativa, criativa, adorava escrever cartinhas, histórias e tinha várias amigas, mas sempre estava chorosa por motivos que nem eu mesma sabia quais eram. Tinha dores no estômago e na cabeça que os médicos não achavam diagnósticos específicos nos exames e sentia a necessidade de me isolar. Às vezes, em festas, eu ligava para a minha mãe e dizia que queria ir para casa. De certa forma, eu não sabia explicar para mim mesma e para ela que me divertir me causava culpa e que minhas dores emocionais se mostravam de forma física.

Arquivo Pessoal/Reprodução

Quando entrei na adolescência, as coisas começaram a ficar mais complicadas e explícitas. Comecei com meus primeiros sintomas de depressão, pesadelos, isolamento e uma dor interna intensa acompanhada de um turbilhão de sentimentos. Foi quando achei um “falso amigo” e conforto que, à princípio, parecia a única coisa que me aliviaria: a automutilação.

Aos 14 anos, os cortes eram superficiais e fracos, e o esforço para escondê-los tremendo. Eu estava confusa e com medo, descobrindo minha sexualidade (sou bissexual), minhas questões emocionais se tornando mais claras e odiando tudo sobre mim. Meus pais começaram a perceber que meus comportamentos estavam diferentes e que eu não parecia saudável e, após alguns meses de resistência, entrei na terapia e comecei a trilhar o que se revelaria uma jornada árdua, porém extremamente decisiva e necessária, para eu me tornar quem sou hoje.

A primeira vez que meus pais viram o meu braço se assustaram muito! O conhecimento sobre terapia e transtornos mentais na nossa família era ainda cheio de tabus e muito primitivo. Acabamos nos desentendendo e ouvia frases do tipo: “você está louca” ou “isso é frescura”. Eles estavam preocupados e não sabiam lidar com aquilo, mas eu também não e me sentia anormal e uma pessoa horrível.

No começo, fiquei desolada, mas minha irmã mais velha sempre me apoiou e conversou comigo e com meus pais, falando que eu não era nenhum monstro e só precisava de ajuda. Comecei a frequentar um psiquiatra, mas, mesmo resolvendo algumas questões, meu quadro continuava instável e perigoso. Os cortes começaram a ficar mais profundos, precisando de pontos hospitalares, e as crises e a depressão mais intensas. Em 2016, quando eu tinha 16 anos, a terapia não estava sendo suficiente e o pensamento de desistir era constante. Eu não enxergava possibilidades de melhora e achava apenas uma saída para minha dor intensa: o suicídio.

Por isso, em abril, minha psicóloga, juntamente com meus pais, resolveram me internar em uma clínica psiquiátrica. A estadia na clinica foi complicada porém eficaz. Eu precisei interromper os estudos e ficar afastada por um tempo. Meus pais receberam instruções e apoio sobre como lidar com meus problemas e eu também. Tinha atividades e acompanhamento terapêutico constante e meu diagnostico começou a ser definido: Transtorno de Personalidade Borderline, algo cada vez mais crescente entre adolescentes, especialmente mulheres, onde a instabilidade emocional é grande, a autoestima extremamente baixa e a capacidade de sentir aumentada, causando o aumento da dimensão da dor e risco de depressão constante.

Arquivo Pessoal/Reprodução

Obtive alta após um mês, vencendo uma batalha, mas longe de acabar a guerra. Recomecei o trabalho na terapia, sempre me autoconhecendo cada vez mais, desenvolvendo estratégias para meu bem-estar, e meus pais me apoiando constantemente. A instabilidade do meu quadro ainda era muito sensível, e novamente em setembro precisei ser internada, com alto risco de suicídio e compulsiva por automutilação.

O ano de 2016 foi o mais difícil da minha vida. Após a alta na clínica, repeti de ano, pois não conseguia focar na escola, e estava mergulhada em uma depressão profunda. Nessa época, meu conhecimento e o da minha família sobre meu quadro era muito mais avançado. Então, eles sempre me apoiavam. Ainda assim, a situação era muito complicada. Toda vez que eu parecia melhorar, novamente caía e não passava nem duas semanas sem me automutilar, tendo os meus piores períodos não conseguindo nem dormir e tendo que estar constantemente vigiada para não me ferir. Ainda precisei de mais uma internação em 2017, mas nessa tudo foi diferente: o processo, a melhora e minha decisão final de que eu não iria cair novamente.

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Levo amizades de todas as minhas internações até hoje. Lá obtive uma rede de apoio e me identifiquei com meninas adolescentes em situação parecida com a minha, as quais serei eternamente grata. Sem mencionar minha família, a qual devo literalmente a vida! Comecei o tratamento no Hospital das Clínicas, em São Paulo, no Instituto de Psiquiatria, com uma equipe altamente qualificada e especializada. Hoje, continuo meu tratamento no HC e participando das terapias. Minha melhora é evidente! As cicatrizes que carrego são uma lembrança diária do quanto eu sofri para vencer, e hoje completo oito meses limpa de qualquer tentativa de automutilação.

Ainda que eu tenha um transtorno e meu quadro precise ser observado, levo a vida do melhor jeito: lutando diariamente, me amando, e tendo a certeza de que, acima de tudo, sou grata a todos que me ajudaram e que minha missão é ajudar outras pessoas a vencerem esse problema. Antes, eu pensava que seria impossível levar uma vida normal, mas descobri com o tempo que batalhando tudo é possível. Em 2018, após muitas batalhas, consegui me formar no ensino médio.

As palavras e a escrita, que foram minhas maiores motivadoras desde sempre, me dão a certeza do meu caminho: que quero ser educadora e trabalhar com métodos educacionais inclusivos, ajudando outros jovens a terem suporte e apoio, coisas que ainda estão longe de serem competentes, ajudando a desenvolver uma rede qualificada. Quero publicar meus livros contando todas as minhas histórias e provando que o impossível sempre será uma questão de opinião.

O rótulo da minha doença pode me acompanhar, mas aprendi que, com ou sem ele, sou uma mulher capaz, repleta de sonhos e realizações, e carrego a certeza do quanto lutei para estar aqui e do quanto aprendi e posso ensinar. Às vezes, estou em lugares públicos e vejo crianças assustadas com minhas cicatrizes, pessoas me perguntam o que aconteceu e se estou bem, todos me julgando. Contudo, não me escondo e sorrio. Afinal, guerreiros que vencem a guerra exibem cicatrizes das batalhas com orgulho!

Isabella Andrade é uma guerreira e faz parte da corrente A.M.E. (autoestima, mental health e empoderamento) da CAPRICHO.

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