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Caso João de Deus: como a história de desqualificar denúncias se repete

O que se sabe até o momento sobre o caso do médium João de Deus, que nega acusações de estupro e desvalida denúncias de vítimas, principalmente as anônimas

Por Isabella Otto Atualizado em 21 dez 2018, 17h59 - Publicado em 18 dez 2018, 11h00

Em 2018, o Brasil registrou em 164 estupros por dia, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Entretanto, é preciso lembrar que menos de 10% dos casos de violência contra a mulher são denunciados. Um desses casos chegou à polícia recentemente. João Teixeira de Faria, mais conhecido como João de Deus, é um médium brasileiro nascido em Cachoeira de Goiás. Aos 76 anos, ele foi acusado por 330 mulheres no que já é uma maiores quebras de silêncio da história. Uma da vítimas é Dalva, filha do sensitivo.

João de Deus atendendo na Casa Dom Inácio de Loyola, em Goiás. Reprodução/Site da Casa Dom Inácio de Loyola/Reprodução

O criador do centro espírita Casa Dom Inácio de Loyola ganhou fama internacional por seu trabalho como médium, realizando muitas cirurgias espirituais, e foi durante muitos anos o principal sustento de Abadiânia, no interior de Goiás, cidade sede do centro e onde João de Deus faz a maioria de seus atendimentos. Muitos turistas e fiéis visitam a cidade e aproveitavam para fazer uma paradinha na Casa Inácio de Loyola, inaugurada em 1976.

Com mais de 40 anos de profissão, é impossível dizer quantas mulheres o ex-garimpeiro atendeu, mas o depoimento das 330 vítimas deixa claro que o médium fazia suas escolhas: pacientes vulneráveis, cuja cura espiritual era a última carta do baralho. “Eu pensei que fosse um fato isolado e que ninguém iria acreditar em mim”, disse uma das vítimas ao programa Domingo Espetacular, da Rede Record.

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O QUE ESTÁ EM JOGO?
A primeira denúncia contra João de Deus foi feita em maio pela coreógrafa holandesa Zahira Leeneke Maus
. A jovem procurou o médium justamente para curar um trauma sexual, como relata em desabafo nas redes sociais. O depoimento de Zahira incentivou outras mulheres a se pronunciarem.

No início de dezembro, o número de mulheres ouvidas pela polícia já ultrapassava 300. No último domingo, 17, João de Deus se entregou à polícia, mas não sem antes ter sido ovacionado por muitos fiéis, que inclusive fizeram vigília na Casa Dom Inácio de Loyola em solidariedade ao líder.

Muitos frequentadores do centro espírita e moradores da cidadezinha de Goiás temem que, caso João de Deus seja declarado culpado, Abadiânia sucumba sem a atividade do centro, que perderia credibilidade com a prisão de seu criador. “Médium João, estamos com você” e “É em defesa da Casa Dom Inácio” diziam alguns cartazes de fiéis e simpatizantes em manifestação que ocorreu no último dia 13. O centro, além de um importante polo espiritual e turístico de Abadiânia, também fornece alimentos e patrocina projetos de apoio a crianças e adolescentes da região.

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Fiéis e simpatizantes durante manifestação em defesa de João de Deus na cidade de Abadiânia. “Deus está acima de tudo”…. mas que Deus? Reprodução/Instagram @joaodedeus_oficial/Reprodução

ENTREGUE MAS NÃO CULPADO?
No último domingo, 16, João de Deus se entregou à polícia de Goiás e foi detido no núcleo de custódia do Complexo Penitenciário de Aparecida de Goiânia, destinado a presos com a saúde comprometida e idosos.

As denúncias e o caso do médium está sendo investigado pela Polícia Civil. Apesar de ter se entregado, “John of God”, como é conhecido internacionalmente, negou que tenha praticado qualquer tipo de abuso sexual.

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Alberto Toron, advogado de defesa, tenta desqualificar o depoimento das vítimas. “Até agora nós não sabemos o nome das mulheres, nem temos conhecimento do rosto delas(…) Outra questão é que alguns dos fatos relatados aconteceram até há mais de dez anos, alguns há quatro anos”, disse em entrevista ao GLOBO. O profissional quer que cliente responda em prisão domiciliar.

NÃO TOMARÁS O NOME DO SENHOR DEUS EM VÃO?
“Ele me deu uma surra que quase me matou com vara de ferrão”, disse Dalva, filha do curandeiro, em entrevista ao Domingo Espetacular. Mesmo alegando ter vergonha de si mesma, e inclusive deixando claro que não denunciou antes pelo mesmo motivo e por conta das ameaças que sofria, ela decidiu revelar sua identidade. Outras vítimas, contudo, seguem preferindo ter a identidade preservada.

Isso acontece porque a vítima se sente mais protegida e menos exposta. Mais protegida, porque, além de poder estar sofrendo algum tipo de ameaça, ela não vai precisar enfrentar diretamente o julgamento da sociedade – que é estruturalmente machista. E menos exposta porque é de conhecimento geral que vergonha e culpa são os principais motivos que calam uma vítima de estupro e violência doméstica.

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‘O Silêncio é Uma Prece’ é o novo do filme lançado neste ano que conta a história do médium. O título é bastante significativo… Divulgação/Divulgação

Estipular um prazo de validade para as denúncias é outra saída usada por tantos advogados de defesa pelo mundo. Eles tentam convencer a Justiça e a população de que, se a mulher não denunciou antes, é porque algo de errado tem na história – desconsiderando qualquer tipo de ameaça ou batalha psicológica interna que aquela mulher possa estar enfrentando.

É muito comum também que advogados de defesa usem o passado das vítimas ou a roupa que elas estavam usando no momento do crime para justificar o ocorrido e até mesmo transferir a culpa do estuprador para a estuprada. “Era uma prostituta e tinha um passado de extorsão”, disse o advogado de João de Deus sobre a coreógrafa holandesa que iniciou o onda de denúncias contra o médium.

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Em novembro, na Irlanda, um homem foi inocentado pela Justiça após a advogada de defesa do mesmo levar ao tribunal uma calcinha parecida com a que a vítima usava na noite do crime. “Vocês têm que pensar em como ela estava vestida. Ela estava usando uma calcinha com frente de renda!”, alegou Elizabeth O’Connell, transferindo a culpa para a mulher e fazendo com que todos acreditassem que o problema é realmente a calcinha e não o estuprador.

Isso tudo pode parecer muito absurdo para você, mas, acredite, convence muita gente. Isso porque a principal saída da Defesa é fazer com que o estupro pareça sexo consensual. Logo, qualquer coisinha vira uma “prova de peso”: a roupa íntima da vítima, o período que ela demorou para fazer a denúncia, o passado da mulher e até mesmo possíveis doenças.

Alberto Toron, por exemplo, alegou que Dalva, filha do médium, já foi internada algumas vezes, dando a entender que ela não é “boa da cabeça” e que a Justiça não pode levar a sério o que ela diz – não cogitando em nenhum momento o fato de que ela pode ter sido internada por ter justamente o psicológico abalado depois de ser abusada pelo pai e ameaçada por ele durante anos.

Dalva, filha do médium, que acusa o pai de abusar dela sexualmente desde criança. Reprodução/Record/Domingo Espetacular/Reprodução

Não se surpreenda caso também escute algo do tipo sair da boca do próprio advogado de João de Deus ou de algum fiel: “A consulta espiritual precisava de troca de fluídos” ou “a mulher devia estar fragilizada e deve ter se entregado mesmo” ou ainda “se voltou, é porque gostou”. Tais alegações se tornam especialmente problemáticas porque o machismo estrutural da nossa sociedade faz com que a gente esteja inconscientemente pronto para transferir a culpa de uma situação de assédio sexual e estupro do criminoso para a vítima. É como se o fato de a mulher não ter feito nada na hora para impedir o abuso ou retornasse na esperança de que ela estivesse imaginando coisas, como muitos costumam dar a entender, tirasse totalmente o peso das costas do assediador.

No caso de João Teixeira de Faria, muita coisa está em jogo. Se condenado, o sensitivo que opera em nome de Deus terá cometido crimes de assédio sexual, violência doméstica, sextorsão, crimes contra a fé da humanidade, contra seus fiéis e apoiadores, e contra uma cidade cujo principal sustento é o centro espírita criado por ele. Estupro é crime e a Justiça tem na mão o depoimento de 330 mulheres na maior quebra de silêncio da história. E como diz o próprio slogan da Casa Dom Inácio de Loyola: “Para quem acredita, nenhuma palavra é necessária”.

Que a história não se repita. 

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