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Branco, não anule a luta antirracista falando que todas as vidas importam

Nem neutralize o racismo dizendo que "é algo natural" ou que "a maioria dos crime é cometido por pessoas negras", porque não é verdade.

Por Isabella Otto Atualizado em 6 jun 2020, 10h10 - Publicado em 6 jun 2020, 10h10
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CAPRICHO/Divulgação

Em 1444, os portugueses deram início à escravidão, comprando negros do Sudão e transformando-os em propriedade enquanto exploravam a costa da África e colonizavam as Américas. Em 1539, os primeiros escravos chegaram ao Brasil, inicialmente para trabalhar em lavouras e depois exercendo qualquer tipo de trabalho que o branco não queria fazer ou não considerava digno de ser feito. Em 1860, as primeiras tentativas de uma política de segregação racial começaram a aparecer nos Estados Unidos. Uma delas foi a criação da Ku Klux Klan, seita supremacista branca da extrema direita criada por ex-combatentes de tropas sulistas que atacavam líderes afro-americanos por não admitir que os negros recém-libertos tivessem os mesmos direitos que os brancos. “Em 1875, o Tennessee adotou a primeira Lei Jim Crow e o resto do Sul o seguiu rapidamente. O termo ‘Jim Crow’, nascido de uma música popular, referia-se a toda lei (foram dezenas) que seguisse o princípio ‘separados, mas iguais’, estabelecendo afastamento entre negros e brancos em trens, estações ferroviárias, cais, hotéis, barbearias, restaurantes, teatros, entre outros. Em 1885, a maior parte das escolas sulistas também foi dividida em instituições para brancos e outras para negros. Apenas nas décadas de 1950 e 1960 a Suprema Corte derrubaria a ideia de ‘separados, mas iguais'”*. Hoje, apesar de a escravidão ter sido abolida (no Brasil, os escravos foram “libertos” com a assinatura da Lei Áurea em 1888), fala-se sobre um modelo de servidão moderna, com pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão, principalmente na África e na Ásia. Estima-se que o mundo ainda tenha 40 milhões de escravos, segundo dado do Índice Global da Escravidão de 2018. A escravidão contemporânea, assim como a falta de negros em posições de liderança em empresas, enquanto ocupam a maioria das vagas em trabalhos que não exigem qualificação universitária, como trabalhadores rurais e operadores de telemarketing, são sintomas de uma doença que começou lá em 1444 e moldou uma sociedade pensada por e para brancos. Não foram os negros que inventaram o racismo.

Criança fantasia de Ku Klux Klan, em 1956, dentro de um carro com os dizeres “os brancos sulistas são os melhores amigos dos negros, mas não à integração”. Bettmann/Getty Images

Essa é uma herança que todos carregam e por uma questão histórica é muito importante que brancos reconheçam seus privilégios. Este é o primeiro passo para entender porque a fala “todas as vidas importam” é problemática. O privilégio branco é um resultado direto do racismo e não é tão difícil assim de reconhecê-lo. Por exemplo, já reparou como, quando estamos lendo um livro e não temos informações sobre a cor de pele dos personagens, tendemos a imaginá-los brancos? Isso se reflete no cinema e na teledramaturgia. Quantos negros você vê naquela série que ama? Quantos negros têm na novela que você assiste? Quantos deles fazem parte do “núcleo Leblon” e não do “núcleo estereotipado da classe C”? Quando uma pessoa negra lê um livro, ela também tende a imaginar uma pessoa branca no lugar da protagonista. Imagina uma criança negra que cresce vendo as prateleiras das lojas ocupadas majoritariamente por bonecas brancas, de cabelo loiro e liso, e olhos claros? Daí ela pega a antiga coleção de revistas da mãe e vê que a maioria das mulheres que estampam as capas é branca. Ela liga a televisão e é a mesma coisa. Ela entra no Instagram e percebe que a maioria das influenciadoras de sucesso está dentro do padrão europeu de beleza. Essa falta de representatividade faz com que ela entenda que aqueles lugares de destaque não são para ela, porque ela não têm esse privilégio, ela herdou uma cor de pele que automaticamente deixa sua vida mais complicada. E ela nem sempre consegue entender o porquê, já que escuta por aí que os tempos são outros, que eles estão mudando. Na prática, parece tudo tão igual… Não parece revoltante o suficiente para você?

 

Agora, imagina a seguinte situação: em meio a manifestações antirracistas nas ruas e nas redes sociais, com hashtags como #BlacKLivesMatter sendo utilizadas para dar voz a pessoas que historicamente foram silenciadas, essa mesma garota se depara com as hashtags #WhiteLivesMatter e #AllLivesMatter, postadas em suma por pessoas que nunca foram silenciadas por sua cor de pele e querem roubar o protagonismo de uma causa cujo palco não é delas? Além disso, ao dizer que “todas as vidas importam”, você dá a entender que o movimento #BlackLivesMatter é supremacista de alguma forma e acredita que vidas brancas não importam, deturpando completamente a questão. Assim como o feminismo não é o contrário do machismo, pois não acredita que mulheres são superiores aos homens por questões de gênero, a luta antirracista não está dizendo que vidas negras importam mais que outras, caro branco vitimista. O #BlackLivesMatter, movimento ativista internacional, criado nos Estados Unidos em 2013, após o adolescente afro-americano Trayvon Martin ser baleado a tiros por George Zimmerman, e este ter sido absolvido pela Justiça, alerta justamente para o contrário: o genocídio das pessoas negras e de como tantos crimes cometidos contra negros caem no esquecimento e/ou escancaram o beneficiamento de brancos, ainda mais se elas forem ricos, influentes e/ou usarem fardas. Você, branco, que vive em um bairro nobre, tem um trabalho estável, teve acesso à educação de qualidade, não precisa escolher entre pagar um boleto ou comprar um quilo de feijão e não se sente ameaçado ao sair na rua por causa da sua cor de pele, você realmente acha que dá para colocar sua realidade na balança quando do outro lado dela temos um preto, que vive na periferia, precisa pegar vários transportes públicos para chegar ao trabalho ou à escola, que fica localizada numa região de risco, não tem como pagar por um plano de internet mas precisa fazer o EAD e prestar o Enem para ser enfim o primeiro da família a cursar uma faculdade, e tem o constante medo de sair na rua e ser morto por sua cor de pele?

Oficias nazistas medindo o tamanho do nariz de um homem para então determinar a ascendência racial dele e se ele pode ser considerado ariano (raça pura), em 1941. Hulton-Deutsch Collection/CORBIS/Getty Images

Em 2016, o advogado e comentarista político Caio Coppolla deu a seguinte declaração durante o Programa Pânico, da Rádio Jovem Pan: “vantagens e desvantagens, no nascimento, na natureza, elas são circunstanciais, elas não são absolutas. Por exemplo, se você quer ser um velocista, ganhar uma Olimpíada, ser negro é um privilegio. Você vai ter uma vida enfrentando o racismo, dependendo da sociedade em que você viver, mas ser negro é um privilégio“. Ele foi aplaudido nos comentários por outros brancos falando que não são privilegiados, que ser privilegiado é ser filha da Beyoncé ou então que ser negro é um privilégio em nossa sociedade, porque eles têm acesso a cotas nas universidades, por exemplo. Outro comentário bastante frequente usado por essas pessoas é o de que “devemos parar de separar as pessoas por raça, pois isso é racismo”. Para tal argumentação, a apresentadora Bielo Pereira tem a resposta: “o problema é: a raça é só pro negro, pro branco não”, pontuou em vídeo publicado pelo canal do “Quebrando o Tabu” no YouTube. Vale destacar que, na bancada da Jovem Pan, todas as pessoas que discutiram a questão do privilégio branco eram brancas. Será que um negro teria tido o mesmo posicionamento de Caio?

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Para responder essa pergunta, procuramos a Rosângela Santos, de 29 anos, velocista olímpica brasileira. “Não concordo [com o posicionamento do comentarista], não é uma escolha. E esse dito ‘privilégio’ acaba assim que cruzamos a linha de chegada. Dentro da pista, nunca passei por nenhum episódio de racismo, mas nas redes sociais, sim. Ou em comentários de matérias. Com a internet ficou muito fácil destilar a ignorância achando que não vai ser pego”, relata a atleta, que acredita em privilégio branco e no poder transformador dos protestos pacíficos que estão acontecendo: “Nunca vi amigos brancos serem seguidos enquanto faziam compras no mercado, nunca vi serem xingados por serem brancos, nunca vi sofrerem violência policial direta por causa da cor da pele ou serem rejeitados em um emprego pelo cabelo, ou terem medo de serem parados por uma blitz [mesmo não tendo nada a esconder]”.

 

Na última terça-feira, 2, Miguel Otávio, de 5 anos, morreu após cair do 9º andar de um prédio de luxo em Recife, Pernambuco. A mãe do garoto, Mirtes Renata Souza, trabalhava para Sarí Gaspar Côrte Real, primeira-dama da cidade de Tamandaré, e precisou levar o filho com ela para o trabalho já que não havia sido dispensada pela patroa por causa da quarentena e Miguel estava sem aulas na creche devido a pandemia de coronavírus. Mirtes precisou ir passear com o cachorro de Sarí e optou por deixar o filho seguro no apartamento. O menino começou a chorar querendo a mãe e, impaciente, a patroa o colocou e o deixou sozinho no elevador do prédio. Miguel desceu no 9º andar, subiu em uma grade na área dos aparelhos de ar-condicionado e caiu. Sarí, a patroa, fazia as unhas enquanto isso. “Ele ficou chorando, eu disse para ele que a mamãe já voltaria. Desci e, quando cheguei na portaria, o encarregado disse que alguém tinha caído do prédio(…) Ela [a patroa] não teve nem dez minutos de paciência com meu filho. Sempre tive com o filho dela“, disse Mirtes em entrevista no Programa Encontro com Fátima Bernardes, que reforçou que, se fosse o contrário, o rosto dela, uma mulher negra e pobre, estaria estampado em todos os veículos de comunicação. O rosto da patroa, mulher branca, rica e influente, foi poupado. Sarí pagou uma fiança de R$ 20 mil e foi solta. Ela segue respondendo por homicídio culposo.

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“Eu fico extremamente chateada porque as pessoas não enxergam além do que elas querem, são pessoas que vivem em bolhas, as mesmas que acreditam em meritocracia, as mesmas que falam que não são racistas porque têm amigos negros”, lamenta Marina Campos, de 25 anos, estudante de moda, que percebeu o privilégio branco na escola: “Em época de Festa Junina, meninas brancas eram escolhidas pelos meninos para dançar. Eu era a única negra retinta da classe e tinha que buscar alunos de outras salas que quisessem ‘matar aula’ para encontrar um par. Antes eu achava que isso tudo era porque eu não era bonita. Só que, analisando bem, ninguém era muito bonito naquela época e o problema era só comigo”.

Marina ainda defende que usar a hashtag #AllLivesMatters é como querer usar a hashtag #OrgulhoHétero no mês do Orgulho LGBTQ+, celebrado agora em junho. “A gente sabe que, independentemente da cor, todo mundo morre um dia, mas o nosso questionamento é por que as nossas vidas são tiradas? Também existe o fato de nossas conquistas serem questionadas sempre. Se um negro aparece com algo caro, as pessoas já pensam que ele roubou. Já o branco ninguém questiona“, pontua. É como explicou Adilson Moreira, professor doutor pela Universidade de Harvard em Direito Antidiscriminatório e colunista da editoria de Justiça da CartaCapital, em entrevista para Breno Tardelli em 2018: “Microagressões podem tomar a forma até mesmo de atos que aparentemente expressam polidez. Um segurança de shopping que pergunta a homens negros se eles precisam de ajuda pode estar na verdade motivado pela imagem da periculosidade do homem negro”.

Mãe e filho protestando em Arkansas, nos EUA, em 1959, segurando cartazes com os dizeres “governador Fausus, salve nossa América cristã” e “mistura de raça é comunismo”. Bettmann/Getty Images

Neutralizar o racismo é também uma forma de anular a luta antirracista. Na última quinta-feira, 4, uma influenciadora chamada Luisa Nunes postou uma sequência de Stories falando sobre o assassinato de George Floyd, de 46 anos, por um policial que o asfixiou até a morte. Dentre as muitas coisas que ela disse, como falar que é compreensível que uma pessoa sinta mais medo ao ver um negro com “trejeitos que pareçam de um criminoso” ao ver um “homem branco engravatado”, ela deu a seguinte declaração: “Vai ser sempre natural, normal e instintivo do ser humano ter um pouco do que a gente chama de racismo, julgar a pessoa pela raça“. Luisa apagou os Stories após eles viralizarem, mas não admitiu que as falas foram racistas e disse que deturparam o que ela disse: “Eu não sou racista e não defendo movimentos racistas. Eu luto para que as mulheres sejam mais felizes e que crianças tenham futuros mais promissores”, escreveu.

Este texto é também para mim, mulher branca, loira, de olhos claros, jornalista, que nunca tive dificuldade em arrumar um emprego por causa da aparência – muito pelo contrário -, nunca vou sentir na pele o que é sofrer racismo, nunca serei protagonista da luta antirracista e jamais conseguiria ter escrito esta matéria se não fossem as vozes de Marina Campos, Rosângela Santos e de mulheres negras que me ensinaram e me ensinam diariamente: Bielo Pereira, Nátaly Neri, Gabi Oliveira, Rosa Luz, Ana Paula Xongani, Malía, Aniké Pellegrini, Taya Nicaccio, Stella Chidozie, Stephanie Ribeiro, Mc Soffia, Andreza Delgado, Christiane Silva Pinto, Bruna Nunes, Thelma Assis e tantas outras que estão na internet, nas ruas, ocupando espaços e protagonizando uma luta que a nós, brancos, cabe ouvir, aprender e apoiar. Afinal, citando mais uma vez a fala de Angela Davis, “em uma sociedade racista, não basta não ser racista. Tem que ser antirracista”.

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*KARNAL, Leandro [et al.]. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007.

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