Ela me mostra o caminho do rio

A autora Marcia Tiburi fala da garota que vive dentro dela

Por Marcia Tiburi Atualizado em 1 nov 2024, 13h41 - Publicado em 14 mar 2016, 20h00

Das coisas que eu posso contar, porque não posso contar tudo (quem pode?) havia o frio. Na cidade onde vivi até meus 17 anos as temperaturas eram abaixo de zero. Eu, meu irmão, minhas irmãs, íamos à escola à pé, sobre poças congeladas. Como todo jovem a gente não precisava de muita roupa. Andávamos quarenta minutos, sempre muito rápido pra esquentar, mas ninguém falava disso.

O clima humano combinava com o clima geográfico. Era um mundo onde a gente aprendia a ser só. E a ser forte.

O nosso era um mundo bruto. Não posso dizer que era simples. Era bruto. Hoje, olhando para trás, vejo uma releitura possível. Se penso bem, aquele mundo bruto tinha um lado orgânico que hoje faz falta. Fazíamos as nossas roupas, plantávamos a nossa comida, a água vinha limpa do poço. Tudo o que hoje se tornou motivo de ativismo ecológico era, naquela época, o nosso jeito comum de viver.

Não tínhamos carro, não saíamos de férias. Tive carros depois, logo desisti. Não tenho paciência para máquinas. Tirei férias, mas nunca gostei dos tempos sem nada fazer. Era assim, bem diferente de hoje. A televisão chegou tarde no nosso mundo meio rural. O mar eu vi quando já morava em Porto Alegre. São exemplos, entre outros. Não se pode comparar o tédio da televisão com a beleza do mar, mas até hoje eles me são estranhos. Fiz televisão e nunca me assisti. Da minha casa no Rio eu vejo o mar da Baía da Guanabara, mas nunca vou a praia. Mas é óbvio que  se todo dia eu preciso olhar para bem longe, prefiro evidentemente o mar do que a televisão.

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A minha mãe brigava comigo dizendo que eu estudava demais. A escola dava medo, mas eu amava as aulas de matemática e era um prazer chegar em casa e fazer tudo de novo. Quando descobri a filosofia na estante da biblioteca municipal, praticamente escondida nos fundos da igreja, encontrei o desafio que moveria a minha vida. Eu sabia que passaria o resto da vida a ler aqueles livros.

Lembro de contar os anos, depois os meses, depois os dias para ir embora da cidade e da casa dos meus pais. Vejo minha mãe, como a maior parte das mães a chorar à porta vendo-nos partir e sem poder dizer que era melhor que a gente fosse embora logo. Eu fui, até hoje não me livrei do desejo de ir. Ir é o verbo intransitivo que explica a minha vida.

Tenho a impressão de que sobrevivi à adolescência porque encontrei aqueles livros. É um exagero falar assim, olhando agora para aquele tempo. Então eu digo, com muito respeito a quem sobrevive de verdade, concretamente, à injustiças, ameaças, catástrofes, que sobrevivi. Digo metaforicamente, que sobrevivi porque encontrei os livros e porque sempre, desde menina, eu lia, escrevia e desenhava e esses eram os meus antídotos contra os sofrimentos disponíveis no mundo. Eu corria atrás da linguagem, sem nem saber que se chamava linguagem a esse lugar para estar no mundo. Quando a gente lê, escreve e desenha, coisas que eu fazia como alguém que se segura a uma corda no abismo, se pode ficar só, se encontrar com a gente mesmo. Então, é possível ficar, achar um lugar para se sentir menos estranho, menos inadequado. Às vezes é isso o que falta em um mundo onde todos estão obrigados à conexões nem sempre verdadeiras.

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Do fundo das brumas daqueles tempos difíceis, uma coisa brilha até hoje. É a promessa que fiz, naquela época, de que a vida valeria a pena e que eu nunca abandonaria a menina que eu mesma fui.

Ando de mãos dadas com a jovem revolucionária que nasceu comigo. Imito seu jeito selvagem de seguir. Quando meus pés estão calejados de tanto caminhar, ela me ensina o caminho do rio. Aquele no qual não nos banharemos duas vezes. Ela me faz molhar os pés, tomar um gole de água e avisa que é preciso atravessar a correnteza sem medo.

Marcia Tiburi é autora e filososa. Em 2015, lançou Como Conversar Com Um Fascista, pela editora Record.

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