365 DNI: mais um filme problemático disfarçado de romance que faz sucesso

Filme polonês que romantiza questões como sequestro e abuso sexual foi inspirado em uma trilogia de livros e pode ganhar continuação

Por Gabriela Junqueira Atualizado em 30 out 2024, 23h57 - Publicado em 21 jun 2020, 10h12
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CAPRICHO/Divulgação

O filme polonês 365 DNI (365 Dias, em português) tem classificação indicativa para maiores de 18 anos e é um dos lançamentos da Netflix que está fazendo mais sucesso. No Brasil, por exemplo, ele ficou em primeiro lugar na lista de mais vistos e já tem uma legião de fãs pedindo uma continuação. Mas há um grande problema (além de menores de idade estarem assistindo): o roteiro é extremamente problemático.

Resumindo a história, Massimo (Michele Morrone) é um mafioso que, ao ser atingido por uma bala, vê o rosto de uma mulher e desenvolve uma fixação por essa imagem. Ele passa a procurá-la pelo mundo até que a encontra em Laura (Anna‑Maria Sieklucka). Massimo então resolve raptar a moça e diz a ela que dará 365 dias para que se apaixone por ele. Depois desse tempo, caso o plano não dê certo, ele a libertar��. Apesar de o personagem dizer que não fará nada contra a vontade de Laura, ele se contradiz em muitas cenas.

365 dias
Laura e Massino em cena do polêmico filme 365 dni/ Netflix/Reprodução

Perdida e assustada, Laura insiste que não é assim que o amor funciona e tenta escapar algumas vezes, mas é sempre detida. À princípio, a personagem mostra resistência ao sequestro e à toda situação, contudo, com o desenrolar da trama, se “apaixona” por Massimo – como era de se esperar. O que no filme é mostrado como amor, entretanto, é apontado por especialistas como um claro retrato da Síndrome de Estocolmo. “É problemático? Pode apostar que sim. 365 DNI não foi escrito para um Oscar. O filme foi criado para uma mulher que quer ver pornô, mas não quer ser julgada por isso”, disse a atriz Alice Vaughan no podcast Two Girls One Mic.

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A Síndrome de Estocolmo é um estado psicológico em que a vítima desenvolve uma dependência, simpatia e/ou sentimento por seu sequestrador ou agressor. Ela recebeu esse nome após ser registrada pela primeira vez durante um assalto ao banco “Sveriges Kreditbank of Stockholm”, na cidade de Estocolmo, em 1973. Os reféns envolvidos no caso chegaram a negar ajuda da polícia e depois de libertos criaram um fundo para ajudar os criminosos.

Na ficção, Laura vai a festas, faz banhos de compras acompanhada de funcionários que carregam suas sacolas e até passeia de iate. Esse “mundo dos sonhos” romantizado por tantos filmes, somado ao fato de o protagonista ser um cara bonito, anula as muitas problemáticas por trás trama. O que Laura vive com Massimo está longe de ser uma relação saudável e só diz o contrário quem nunca viveu um relacionamento abusivo ou se deixa cegar por aparências. É o mafioso quem escolhe para onde a mulher vai, como, por exemplo, quando ele decide que Laura viajaria para Varsóvia e ponto. Ele também tenta controlar suas roupas, puxa ela pelo braço em inúmeras situações e até chega a passar a mão pelo seu corpo, inclusive em suas partes íntimas, enquanto ela está amarrada dentro de um avião, sem consentimento, o que pode ser considerado abuso sexual.

Sim, é verdade, em certo momento da história, a protagonista se rende “à paixão” e decide largar tudo pelo ~sedutor~, mas quantas vezes essa atitude problemática já não foi romantizada por filmes? Essa escolha não foi tomada por uma pessoa livre em um relação equilibrada. Como a amiga da protagonista mesmo diz em uma das cenas finais do longa, Laura está presa em uma gaiola de ouro, mas continua sendo uma gaiola.

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Como já aconteceu com outros sucessos, o filme foi baseado numa trilogia, escrita por Blanka Lipinska, e pode ter continuação. Apesar da narrativa ter sido duramente criticada nas redes sociais, ela também despertou em muitas mulheres a vontade de levar a vida de Laura. Não acredita? “Precisando rapidamente ser sequestrada pelo Massimo do 365 Dias” e “chorando depois de assistir 365 Dias sabendo que o Massimo nunca vai me sequestrar” foram alguns dos comentários feitos por jovens no Twitter. Massimo é o famigerado “cara padrãozão” e a aparência física dele parece contar mais que o comportamento assustador que ele têm. Invertendo a situação e trazendo ela para a realidade, dizer que gostaria de ser sequestrada pelo personagem é como reproduzir a fala de homens que dizem que a mulher deveria agradecer pelo estupro porque o estuprador é bonito demais para ela.

Essas jovens, contudo, não têm culpa de se sentirem dessa forma e reproduzirem falas que compactuam com a cultura do estupro. O “X” da questão está na construção dessa e outras tantas narrativas que romantizam questões extremamente preocupantes e as fazem soar como “um amor proibido de cinema”. Quantas personagens já não abriram mão de sua liberdade para satisfazer as vontades de um homem? Quantos personagens não tiveram suas atitudes, muitas delas imperdoáveis, suavizadas por um rostinho bonito ou um tanquinho definido?

Por que 365 Dias se tornou um sucesso? Porque ele repete uma fórmula antiga somada a cenas quentes, que a Netflix classificou como “eróticas” não “pornográficas”, a cada cinco minutos e cenários de luxo. Alguém disse Cinquenta Tons de Cinza? Assim como Christian Grey, Massimo é o estereótipo do macho alfa, um clichê que costuma ser explorado nas telas. Não é exagero dizer que a narrativa do filme não vai além disso. 365 DNI pode ser considerado um tipo de soft porn (filmes conhecidos por terem o enredo fraco mascarado por várias em cenas de sexo não explícitas e nudez). Sem contar os diversos erros na montagem. Na real, não passa de uma fanfic para maiores de 18 anos. E uma bastante problemática.  

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